sábado, 13 de maio de 2017

QUEM, OU O QUE, É NOSSO INIMIGO?

"Existirmos, a que será que se destina?"
(Caetano Veloso, Cajuína)
                                                    .
A chamada modernidade (denominação questionável) nos apresenta problemas sociais da maior gravidade sem que identifiquemos quem, ou o que, é o culpado fundamental. 

Em torno da análise dos trágicos problemas sociais que hoje afligem a humanidade gravitam indicações de supostas causas, que mais não são do que efeitos. A causa verdadeira, ou não é identificada ou é propositadamente escamoteada. 

A par do desenvolvimento da racionalidade e dos ganhos tecnológicos alcançados desde o passado remoto em que se adoravam bezerros de ouro e erguiam pirâmides a deuses sanguinários, somos inconscientes do significado e comando do totem da modernidade, criado pelo homem e que dele tomou conta, submetendo-o às suas regras ditatoriais: o sujeito automático da forma-valor (Marx) e sua ação deletéria reificada, fetichista. 

Desde o final do século 18 começou a se esboçar o conflito de interesses de classes, momento no qual se tornou imperiosa a substituição do ignominioso escravismo direto, no qual os seres humanos podiam ser coisa (uma mercadoria), objeto de propriedade de outros homens (apesar de todas as doutrinas monoteístas que pregam serem os homens filhos de Deus, e irmãos entre si), tudo chancelado por um Direito que olimpicamente negava o mais elementar senso de justiça.

A primeira revolução industrial burguesa colocou os ditos homens livres pelo trabalho assalariado (trabalho abstrato, porque produtor de valor, e ele próprio traduzido como a abstração forma-valor), como classe trabalhadora, em oposição de interesses a uma classe que administrava o capital, dele se beneficiando sob a forma de poder de consumo e poder político, a classe capitalista

Assim, as correntes contestadoras do entrechoque de classes (socialistas utópicos, anarquistas, marxistas, sociais-democratas, etc.) colocaram a classe capitalista como o sujeito dominante  e a classe operária como o sujeito dominado. Caberia, portanto, uma mudança de mãos do domínio social, mediante a qual o sujeito dominado passasse a ser dominador, estabelecendo um estado pseudo-proletário no qual as injustiças sociais seriam eliminadas. As revoluções marxista-leninistas tinham este propósito.    

A humanidade (e os pensadores de então) jamais se apercebeu de que havia outro sujeito social, impessoal, ditatorial, abstrato, criado pelo próprio homem e que paulatinamente passou a dominá-lo: o sujeito automático da forma-valor, criador de uma novidade imperceptível, qual fosse a relação social reificada, com as coisas mortas (mercadorias) ganhando vida e passando a governar as ações humanas. 
Trata-se de uma lógica matemática de auto-reprodução numérica, abstrata, vazia de sentido virtuoso, que se torna real, pois hipostasiada em outra mercadoria simultaneamente concreta e abstrata, com valor de uso e valor de troca, cujo desiderato fundamental é o estranho fim em si de sua mera reprodução aumentada ad infinutum

Assim, a chamada luta de classes (patrões versus empregados, trabalhadores versus capitalistas, que se constituem em faces opostas da mesma moeda) jamais questionou o tal sujeito-automático da forma-valor, que submete tanto aos patrões quanto aos empregados, ainda que em condições existenciais bastante diferenciadas, como um tertiuum genus. Afinal, existindo dois sujeitos em luta pelo domínio social, não se poderia admitir como dominante um terceiro senhor, estranho a tal luta. 

A forma-valor (dinheiro e mercadoria) estava assim preservada e a tal luta de classes se circunscreveria à luta para se saber quem seria o dono do dinheiro, tornado imexível (como diria um dirigente sindical de triste memória, dos tempos de Collor na Presidência). 

Com a vitória da classe operária nesse embate seria criado o Estado marxista-leninista, pseudo-operário, que se encarregaria de dar à classe operária a propriedade do dinheiro, tudo dentro do universo das categorias autocráticas da forma-valor. 

A não percepção de que a mecânica auto-reprodutora própria ao sujeito automático da forma-valor tem sentido autotélico, onívoro, egocêntrico, concentrador, incapaz de promover a distribuição da riqueza abstrata por ele produzida e com reflexos negativos de longo prazo na obtenção coletiva da riqueza material: esta é a causa de não termos dado até agora o tiro de misericórdia no verdadeiro vilão, questionando apenas aspectos periféricos da miséria social que ora se agrava.    

A tese de que a burocracia dirigente teria sido a responsável pela quase natural adesão às leis de mercado pelos países que inauguraram o modelo marxista-leninista de expropriação da propriedade privada dos meios de produção para colocá-la nas mãos do Estado dito proletário (caso da URSS e de China) é, hoje, insuficiente para explicar as causas da derrocada.

Estas experiências históricas, em que pese o fervor revolucionário de quantos acreditaram na mudança de mãos do sujeito dominante personalíssimo de classe social como solução para a opressão social, mantiveram intactas as categorias fundantes do capitalismo (forma-valor, trabalho abstrato, mercadoria, dinheiro, Estado, propriedade estatal, etc.); não foram capazes de superá-las, e aí reside o seu erro fundamental. 

O nocivo desvirtuamento do sentimento revolucionário autêntico, promovido pela burocracia dirigente no chamado socialismo real, derivou de erro de concepção teórica revolucionária, razão pela qual não foi capaz de promover a guinada para a superação das categorias capitalistas, que é o que deveria ter sido feito, ainda que isto representasse um grau de dificuldade imensamente maior do que a simples tomada do poder político. 
Revoltosos húngaros decapitaram a estátua de Stalin em 1956

Faltou aos verdadeiros revolucionários (e estes existem, podem acreditar) que estariam dispostos a abdicar de privilégios governamentais, a compreensão e identificação de um inimigo ainda maior, o sujeito automático da forma-valor, que instrumentaliza o inimigo da classe operária – o capitalista – num nefasto conluio existencial.  

Mais potente do que a figura do capitalista é o capitalismo. Mais potente do que a subjetividade dos dirigentes governamentais é a lógica fetichista da mercadoria que os submete a todos como súditos do totem da modernidade: a decadente forma-valor.
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A INFRUTÍFERA LUTA NOS MARCOS DA POLÍTICA
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É sempre mais fácil tentar-se atingir um alvo concreto, identificável visualmente, do que atingirmos um alvo abstrato; é muito mais fácil, quando se está na oposição política, ser-se contra reformas como a trabalhista e a previdenciária, ditadas pela falência do capitalismo mas executadas pela maioria dos seus obedientes agentes políticos, do que ser-se contra a própria forma de relação social da forma–valor, que criou o trabalho e sua previdência social imprevidente, verdadeira causa dos problemas sociais atuais (sem isentarmos de culpa os políticos que a viabilizam).

Quando o ministro Henrique Meirelles afirma que “ou se reduzem direitos ou a Previdência Social quebra e aí ninguém mais vai receber aposentadoria”, ele está apenas sendo obediente à lógica fetichista de mercado, na qual são os números da economia em fase de destruição social e autodestruição da própria forma aquilo que dita regras de um jogo desumano. 
Ao ouvi-lo falar, veio-me a visão de que um ente abstrato se lhe incorpora mentalmente, como numa patologia esquizofrênica, a lhe dar as ordens por ele docilmente obedecidas; Meirelles deixa a impressão de acreditar piamente que suas conclusões são as únicas possíveis. 

É que os políticos e os tecnocratas não conseguem enxergar outro universo de possibilidades senão aquele ditado pelas regras do capital. Este, aliás, é um bom exemplo do domínio do fetichismo da mercadoria (o sujeito automático da forma-valor) sobre um governante insensível.      

As pessoas geralmente pensam gostar do dinheiro, chegando inclusive a afirmar que é o objeto número um dos seus desejos mais recônditos. Não se apercebem de que gostam mesmo é daquilo que o dinheiro pode comprar, satisfazendo desejos ou necessidades de consumo. 

Assim, o dinheiro sempre lhes parece mero e inofensivo instrumento (o mais importante deles todos), tão ou mais útil que um copo para beber água. Ignoram a natureza negativa e opressora do dito cujo, pois isto não lhes é ensinado nas escolas e academias, muito menos pelos órgãos da grande mídia de informação. 

Acabam, portanto, convencidas de só o desenvolvimento econômico (agora travado pela própria inconsistência dos fundamentos da forma-valor) e o trabalho possam resolver os problemas sociais. 

É incrível como a sociedade desconhece a essência constitutiva daquilo que mais deseja (a obtenção de dinheiro)! Trata-se de uma prova da inconsciência social sobre o funcionamento da própria sociedade. 

Nós todos (não sou exceção, embora tenha consciência crítica do que está por trás disso) buscamos diariamente a obtenção de dinheiro como forma de sobrevivência, uma vez que esta é a única forma de mediação social existente, a que ocupou os poros de todas as sociedades mundiais. Entretanto, não se deve impedir o conhecimento sobre a sua essência destrutiva, fetichista, opressora, ditatorial, apesar de nos ser negado o acesso a tais informações. 

O sujeito automático da forma-valor, ainda que abstrato, se faz presente de forma real nas nossas vidas como a grande divindade a ser venerada; o totem da modernidade, simultaneamente abstrato e real.  
Cabe a nós identifica-lo como o inimigo a ser combatido, denunciando suas exigências genocidas e dos seus representantes políticos manipulados conscientemente ou não; e sepultá-lo definitivamente, abrindo caminho para a era da consciência social de uma nova natureza humana, capaz de promover a emancipação da humanidade. (Por Dalton Rosado)

3 comentários:

SF disse...

Não podemos apriorísticamente atribuir ao dinheiro (meio de troca) todas as mazelas sociais.

Afinal, enquanto reserva de valor e contabilidade dinâmica teve, tem e terá utilidade na construção e evolução da civilização.

Os indígenas enterravam bolas de massa de mandioca envoltas em latex (o pão-de-índio) para os períodos de escassez. As cotias também fazem depósitos de castanhas para a entressafra. As tuberosas guardam amido nas raízes e abelhas mel.
Em todos os ramos da natureza existem formas de previdência para enfrentar os dias difìceis.

A maneira humana de fazer isso é na forma de compotas, embutidos, defumados, salgados e registros contabeis.

E se os caras criassem um programa de computador que mostrasse toda a cadeia das transações intermediada por aquela unidade de troca?
Desde o primeiro ato de confiança que originou aquela unidade de valor?
E se este programa estivesse em todo e qualquer computador ligado em rede?

Parece que já existe isto! As criptomoedas.

Assim como uma faca serve para preparar uma refeição, mas pode ser utilizada como arma, talvez seja o mesmo caso do dinheiro.

Como a produtividade da natureza é muito pequena em relação a produtividade humana, estamos tendo que gerir riqueza.

Porém, com gestores que tem a mentalidade da miséria.

Ou espertalhões iludidos.

É o caso da previdência que mais não é do que um esquema Ponzi. Uma pirâmide financeira destinada a desmoronar se a sua forma de financiamento não passar da contribuição da base para o lastro do aumento de produtividade que já foi obtido.

Poderia ser na forma de criptomoeda universalmente aceita e inatingível pela inflação.

Como vc vê este dilema?

celsolungaretti disse...

RESPOSTA ENVIADA PELO DALTON ROSADO POR E-MAIL:

Caro SF,

o dinheiro é uma mercadoria especial (a única que não tem valor de uso), que serve como equivalente geral capaz de comprar todas as outras, por ser e materialização do valor. Por sua vez, o valor, é uma relação social abstrata, segregacionista, e instituída especialmente pra esse fim. Destarte, o dinheiro é a encarnação dessa relação social e a sua própria viabilidade; é o mecanismo mercadológico que permite a acumulação do valor, seja pelas trocas de mercadorias sensíveis (um saco de feijão, uma casa, etc.) ou por um saldo bancário.

Assim, se não é responsável por todos os males humanos (como o cometimento de um homicídio passional, por exemplo), é responsável pelos males sociais que hoje afligem a humanidade em ordem crescente e que nos impele a sua superação como modo de social negativo. Não é um mero e ingênuo instrumento facilitador da vida, mas, ao contrário, agora é a encarnação do mal em si e que a inviabiliza. Lembre-se que aqui no Brasil, há 517 anos apenas, se vivia muito bem sem dinheiro, apesar de toda a ignorância tecnológica dos índios.

Como dado histórico que é, teve e tem um nefasto papel social, ainda que tenha desempenhado um papel de impulso civilizatório (como as guerras, que impulsionam o avanço tecnológico matando muita gente), mas que deve ser considerado intrinsecamente negativo. Está com sua sentença de morte assinada pelas próprias contradições da forma-valor ora em fase de explicitação empírica destas. Assim, no futuro, deixará de existir e de cumprir o seu nefando papel social.

As reservas em riqueza abstrata contabilizada em números pelo dinheiro em muito breve tempo virarão pó, diferentemente da riqueza material existente na natureza, que se reproduz, apesar das agressões ecológicas patrocinadas pelo dinheiro. A comparação das reservas em dinheiro, abstratas, meramente numéricas, com as reservas de mantimentos feitas pelos homens e animais não é cabível, pois caminha no sentido inverso destas últimas. O dinheiro não satisfaz necessidades humanas, mas apenas se serve dos objetos transformando-os em mercadorias (riqueza abstrata) para escravizar o homem. Tem função oportunista.

Quando superarmos o valor, a moeda sob qualquer forma (como cartões de crédito ou a criptomoeda citada) deixará de existir. Outras formas de organização social e de distribuição da riqueza material produzida no sentido de satisfazer necessidades humanas tomarão o seu lugar de modo humanamente viável, sustentável e cômodo.

É assim que penso.

Um abraço, Dalton Rosado.

SF disse...

Timeo hominem unius libris. Cícero.

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