Celso Lungaretti |
A ótima iniciativa do Dalton Rosado, de escrever sobre as 15 melhores vozes da MPB, me animou a publicar também a minha relação, matando saudades dos tempos longínquos em que ganhava meu pão como crítico de música.
Mas, para não chover no molhado, dei tratos à bola até encontrar um enfoque diferente. E o que mais me agradou foi o de fazer algo personalizado, dando meus depoimentos e impressões sobre os músicos enfocados e disponibilizando os vídeos de canções que geralmente passaram despercebidas para o grande público, mas me sensibilizaram profundamente.
São 40, daí eu ter dividido este post em quatro partes.
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Alceu Valença vem dos confins de Pernambuco, mas tem formação universitária e conseguiu até uma bolsa para cursar durante três meses a Universidade de Harvard, no Massachusetts, o que o levou a aproximar-se do pessoal do flower power e a interpretar músicas nordestinas nas praças e campus, sendo qualificado de "o Bob Dylan brasileiro" por um jornal local.
No Festival Abertura, acompanhado pelo Zé Ramalho. |
Em 1975 foi um dos destaques do Festival Abertura da Globo, com "Vou danado pra Catende". E a notoriedade alavancou as vendas do seu superlativo álbum de estréia, Molhado de suor (1974), que até então passara despercebido.
Por uns tempos ele foi ídolo de universitários, boêmios e outros apreciadores da vanguarda musical, com suas letras fortemente impregnadas de experiências vividas e sofridas, e sua síntese perfeita dos ritmos nordestinos com o rock e o blues.
Mas, tal público envelheceu e se distanciou. E, como os novos consumidores tinham a cabeça feita pela indústria fonográfica e só queriam o trivial simples, Alceu optou por continuar profissional da música em detrimento da fidelidade à arte; passou a fazer as bobagens alegres e dançantes em voga, inclusive folclorizando seu visual à maneira de Luiz Gonzaga.
"Solibar" é uma amostra de tão alto ele se alçou antes da aterrissagem imposta pela torre de controle do mercado. Foi bom demais enquanto durou.
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Com Jair Rodrigues no Fino da Bossa |
Ary Toledo é outro grande talento que o Deus Mercado matou: ganha dinheiro como nunca desde que passou a explorar o filão das baixarias para pessoas reprimidas (que jamais ousariam ir ver uma exibição de sexo explícito na boca-do-lixo, mas quase chegam ao orgasmo com as piadas e músicas misturando obscenidades preconceituosas e escatologia grosseira que pagam uma nota preta para assistir em teatros chiques).
Na década de 1960, antes de se tornar mais um devoto do bezerro de ouro, Ary Toledo teve participação destacada no programa Fino da bossa (e sucessores), com suas hilárias interpretações de músicas repletas de farpas políticas e sociais, como "Pau de arara", "Hey, mister", "Tiradentes", "Canção do subdesenvolvido", "O anúncio" e esta "Descobrimento do Brasil".
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Mais despojado do que o também pernambucano Quinteto Violado (que o precedeu em dois anos), cria seu repertório e tem um trabalho poético muito interessante, como se constata em "Lampião", uma música que grudou no meu ouvido desde a primeira vez em que a escutei.
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A barca do sol é uma banda progressiva carioca que produziu uma síntese interessantíssima entre o rock e ritmos brasileiros. Seu álbum de estréia, em 1974, foi do tipo que deixava qualquer crítico da época de queixo caído: era roqueiro, acústico e fortemente influenciado por... Egberto Gismonti (que, inclusive, dá o ar de sua graça em duas faixas)!
Dissolveu-se em 1981, mas vários membros seguiram carreiras individuais, com destaque para a cantora Olívia Byington.
Deixou várias canções marcantes como legado, mas nenhuma se equipara à enérgica "Brilho da noite", com seus versos cinematográficos a plantarem imagens fortes na nossa cabeça ("Fico rodando nessa estrada,/ com o grito na garganta,/ os olhos na navalha!/ O aço brilhando no escuro!").
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O que dizer, ainda, de Caetano Veloso? Superlativo letrista, revolucionário da música ao encabeçar com Gilberto Gil o movimento tropicalista, o mais polêmico de todos os grandes nomes da MPB.
Destaco, dentre tudo, o que mais me tocou:
Os temas foram todos compostos em linguagem de cordel e alguns deles são de cristalina beleza, como "A história do cavaleiro sertanejo com a princesa do clarear".
Destaco, dentre tudo, o que mais me tocou:
– no começo, seu jeitão tímido, como se pedisse desculpas, ao arrasar todos os concorrentes no programa Esta noite se improvisa (em que artistas do cast da TV Record tentavam lembrar em qual música era encontrada determinada palavra);Mesmo em tempos mais amenos, foi um ato de muita dignidade ele ter prestado o tributo abaixo ao imprescindível Carlos Marighella.
– no tempestuoso 1968, a ousadia de criar uma canção-manifesto no espírito das barricadas parisienses e tendo como título um de seus slogans;
– depois, o fato de haver me antecedido em alguns meses no inferno da PE da Vila Militar, lá sofrendo terríveis agravos morais que um sargento fanfarrão fazia questão de recordar a todo momento; e
– a dor pungente, perceptível em cada linha dos textos que mandava do seu exílio londrino para o Pasquim.
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O cantor e compositor baiano Carlos Pitta entra nesta relação por conta, principalmente, do seu belíssimo álbum de estréia, Águas do São Francisco (1979), fruto de uma pesquisa sobre como o feudalismo europeu impregnava o imaginário popular na região Norte do Brasil, com suas histórias de dragões, princesas, cavaleiros solitários e cantadores errantes, expressões de uma realidade bem diferente da amazônica.Os temas foram todos compostos em linguagem de cordel e alguns deles são de cristalina beleza, como "A história do cavaleiro sertanejo com a princesa do clarear".
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O lado blueseiro do Cazuza era o que mais me atraía nele como integrante do Barão Vermelho e artista-solo.
No seu final de vida, contudo, as insistentes notícias sobre a agonia lenta que protagonizava, de tão deprimentes que eram, fizeram com que eu me distanciasse inclusive de suas músicas.
Para mal dos meus pecados, contudo, fui incumbido pela Agência Estado de redigir previamente seu obituário, de forma que, com alguns ajustes finais, pudesse ser colocado no telex pouco depois da confirmação do óbito. Senti-me como o próprio abutre da notícia...
Mas, sua debochada "Brasil" jamais poderia faltar nesta relação, ainda mais quando a festa, além de pobre, se evidencia podre, mais podre ainda do que nossas piores suposições!
Chico Buarque é outro sobre o qual já se falou e escreveu demais. Trata-se de um extraordinário letrista, tanto que foi, inclusive, o mais bem sucedido em incursionar pelo concretismo (na música "Construção", brilhante!), superando concorrentes do peso de Caetano Veloso e Walter Franco.
Mas, é-me difícil gostar de quem está quase sempre com uma percepção atrasada da realidade – como em 1968, quando permitiu que os militares o erigissem em exemplo positivo, ou seja, o bom menino cujo lirismo elogiavam enquanto desciam o porrete retórico em Vandré e nos tropicalistas, preparando o terreno para o outro porrete, que viria em seguida.
Só em 1970, no auge do terrorismo de estado, a ficha caiu e Chico fez sua autocrítica ("Agora falando sério, eu queria não mentir/ Não queria enganar, driblar, iludir tanto desencanto").
Daí a minha preferência por suas canções de amor, que, além de primorosas, me parecem mais sinceras.
Retomando a linha de suas composições amargas e desencantadas do início de carreira, Chico lançou em 1978 esta "Trocando em miúdos", a melhor música que conheço sobre separação de casais. Ela foi então ofuscada pela contundente "Cálice", mas tem seu lugar nesta relação.
Seu LP O romance do pavão mysteriozo (1974) o projetou nacionalmente, graças à inclusão da faixa principal na trilha da novela Saramandaia, mas era muito mais do que uma moeda que caiu em pé: contava a saga de um nordestino tentando a sorte no Sul Maravilha, com versos característicos da literatura de cordel narrando a partida, a viagem, a chegada e os desafios que foi superando no novo ambiente. Um arraso.
O sucesso de maiores proporções não sorriu de novo para ele, mas continuou fazendo um dos trabalhos mais consistentes da MPB de então, inclusive embutindo conceitos psicanalíticos em suas letras, como nesta "Manga rosa", que remete à visão de Freud sobre amamentação e prazer oral.
Depois, tendo Augusto Boal, Gianfrancesco Guarnieri e Vinícius de Moraes como letristas, foi quem criou todas as músicas de Arena conta Zumbi, uma das culminâncias do teatro brasileiro em todos os tempos (três delas se tornaram sucessos avulsos: "Zambi", "Upa, neguinho" e "Estatuínha").
Venceu dois dos maiores festivais de MPB, com "Arrastão" (1965) e "Ponteio" (1967), fez trilhas para vários filmes, um balé, uma missa, etc. É um músico completo.
Adoro suas "Lero lero" e "Viola fora de moda", mas trouxe para cá uma canção bem mais rara, a belíssima "Pra você que chora", também composta para a peça Arena conta Zumbi, mas que, sabe-se lá por qual motivo, não entrou no disco homônimo. Fazia-me bem escutá-la quando minhas companheiras estavam grávidas e eu, cheio de ansiedade e esperança.
O lado blueseiro do Cazuza era o que mais me atraía nele como integrante do Barão Vermelho e artista-solo.
No seu final de vida, contudo, as insistentes notícias sobre a agonia lenta que protagonizava, de tão deprimentes que eram, fizeram com que eu me distanciasse inclusive de suas músicas.
Para mal dos meus pecados, contudo, fui incumbido pela Agência Estado de redigir previamente seu obituário, de forma que, com alguns ajustes finais, pudesse ser colocado no telex pouco depois da confirmação do óbito. Senti-me como o próprio abutre da notícia...
Mas, sua debochada "Brasil" jamais poderia faltar nesta relação, ainda mais quando a festa, além de pobre, se evidencia podre, mais podre ainda do que nossas piores suposições!
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Mas, é-me difícil gostar de quem está quase sempre com uma percepção atrasada da realidade – como em 1968, quando permitiu que os militares o erigissem em exemplo positivo, ou seja, o bom menino cujo lirismo elogiavam enquanto desciam o porrete retórico em Vandré e nos tropicalistas, preparando o terreno para o outro porrete, que viria em seguida.
Só em 1970, no auge do terrorismo de estado, a ficha caiu e Chico fez sua autocrítica ("Agora falando sério, eu queria não mentir/ Não queria enganar, driblar, iludir tanto desencanto").
Daí a minha preferência por suas canções de amor, que, além de primorosas, me parecem mais sinceras.
Retomando a linha de suas composições amargas e desencantadas do início de carreira, Chico lançou em 1978 esta "Trocando em miúdos", a melhor música que conheço sobre separação de casais. Ela foi então ofuscada pela contundente "Cálice", mas tem seu lugar nesta relação.
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Ednardo é um dos melhores frutos da efervescência musical cearense nos anos 70, companheiro de geração de Fagner, Belchior, Amelinha, Rodger, Teti. Seu LP O romance do pavão mysteriozo (1974) o projetou nacionalmente, graças à inclusão da faixa principal na trilha da novela Saramandaia, mas era muito mais do que uma moeda que caiu em pé: contava a saga de um nordestino tentando a sorte no Sul Maravilha, com versos característicos da literatura de cordel narrando a partida, a viagem, a chegada e os desafios que foi superando no novo ambiente. Um arraso.
O sucesso de maiores proporções não sorriu de novo para ele, mas continuou fazendo um dos trabalhos mais consistentes da MPB de então, inclusive embutindo conceitos psicanalíticos em suas letras, como nesta "Manga rosa", que remete à visão de Freud sobre amamentação e prazer oral.
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O cantor, compositor e instrumentista Edu Lobo deu contribuição importantíssima à MPB, começando pelo engajamento no trabalho político-cultural da UNE, antes do golpe de 1964. Depois, tendo Augusto Boal, Gianfrancesco Guarnieri e Vinícius de Moraes como letristas, foi quem criou todas as músicas de Arena conta Zumbi, uma das culminâncias do teatro brasileiro em todos os tempos (três delas se tornaram sucessos avulsos: "Zambi", "Upa, neguinho" e "Estatuínha").
Venceu dois dos maiores festivais de MPB, com "Arrastão" (1965) e "Ponteio" (1967), fez trilhas para vários filmes, um balé, uma missa, etc. É um músico completo.
Adoro suas "Lero lero" e "Viola fora de moda", mas trouxe para cá uma canção bem mais rara, a belíssima "Pra você que chora", também composta para a peça Arena conta Zumbi, mas que, sabe-se lá por qual motivo, não entrou no disco homônimo. Fazia-me bem escutá-la quando minhas companheiras estavam grávidas e eu, cheio de ansiedade e esperança.
Um comentário:
EH,eh eh...O velho André Mauro de volta.
Como sempre, um senso musical excepcional!
De um velho fã
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