Devemos prezar e manter viva a lembrança de nossas vitórias, pois geralmente elas são dificílimas e nos custam esforços imensos. Quem vai contra a corrente, a desafinar o coro dos contentes (como diria o Jards Macalé), jamais obterá o devido reconhecimento por parte do stablishment, que tudo faz para minimizar ou tanger para o esquecimento os episódios em que o bom combate é coroado de êxito.
Então, juntando várias peças para montar o quebra-cabeças, evocarei aqui uma das raras greves de fome bem sucedidas no Brasil – e, exatamente por isto, muito menos lembrada do que as, por um motivo ou outro, terminadas em desistência, como as de Lula e outros sindicalistas do ABC, de D. Flávio Cappio, de Anthony Garotinho e de Cesare Battisti.
Então, juntando várias peças para montar o quebra-cabeças, evocarei aqui uma das raras greves de fome bem sucedidas no Brasil – e, exatamente por isto, muito menos lembrada do que as, por um motivo ou outro, terminadas em desistência, como as de Lula e outros sindicalistas do ABC, de D. Flávio Cappio, de Anthony Garotinho e de Cesare Battisti.
Tive a oportunidade de contribuir para tal vitória, quando militantes nordestinos iniciaram o protesto de supetão e fiz esforços desesperados para conseguir repercussão na imprensa, vital para que atingissem seu objetivo.
Por ser inconveniente para a direita derrotada e a esquerda omissa, a greve de fome dos quatro de Salvador (dentre cinco presos em flagrante: Antonio Prestes de Paula, Cícero Araújo, Jari José Evangelista, José Wellington Diógenes e Marcos Wilson Lemos. Não consegui agora determinar com exatidão qual deles ficou de fora do protesto, embora tenha uma remota lembrança de que haja sido o primeiro) foi convenientemente relegada ao olvido. É mais fácil encontrarmos registros cuja ótica é policialesca, limitada ao assalto e prisão, como este aqui.
O erro: tentarem reeditar a luta armada... em 1986! |
Daquela vez muitos se furtaram ao dever da solidariedade: houve quem se distanciasse completamente e quem não fizesse tudo que podia/deveria.
Mesmo assim, os esforços dos justos frutificaram – de forma dramática!
Para reconstituir o episódio, aproveitarei, primeiramente, trechos da tese de pós-graduação em História de Lucas Porto Marchesini Torres, na Universidade Federal da Bahia, A questão financeira é uma questão política, cuja íntegra vocês podem acessar aqui:
"Em abril de 1986, cinco homens foram presos após tentativa frustrada de assalto à agência Canela do Banco do Brasil na capital da Bahia, Salvador. Depois de um rápido cerco policial, tiros disparados por ambas as partes e alguma negociação, aos cinco assaltantes restaram poucas opções. O automóvel Voyage que os aguardava de frente ao banco, roubado e com placa fria, tornara-se inatingível para a fuga. Cercados, renderam-se. Entregaram suas armas (dois revólveres calibre 32, dois 38 e uma pistola automática Lugger), mais outras que haviam tomados aos seguranças, uma sacola de dinheiro contendo aproximadamente 230 mil cruzados e alguns objetos pessoais dos clientes (relógios, pulseiras, etc.).
Do primeiro contato direto que tiveram com os policiais surgiu a necessidade de revelarem aquilo que deveria ter sido mantido em segredo e era escamoteado pelos contornos que os cinco detidos pretendiam, até então, dar àquele assalto. Algemados e submetidos, por medo de serem confundidos (e tratados como) bandidos comuns ou membros da Falange Vermelha, apressaram-se em assumir: 'somos todos petistas!'.
Apolônio de Carvalho, dirigente do PCBR, voltando do exílio |
Ao buscarem diferenciar-se dos criminosos ditos comuns, esclareceram que com o assalto desejavam levantar fundos em ajuda à Nicarágua sandinista, para onde o dinheiro seria enviado ou financiaria a viagem deles para lá como trabalhadores voluntários. Tais alegações alçaram essa ocorrência incomum ao noticiário nacional, com grande destaque, e as páginas em que apareceu não eram as policiais.
Na década de 1990 um pequeno documentário foi realizado com os presos. Introduzido por "Soy louco por ti America", de Caetano Veloso e Capinam, (...) Marcos foi recolado à frente da agência onde foi preso para recontar sua versão, agora não mais para agentes policiais. (...) Primeiro registrou demonstrações de coragem e capacidade do grupo, conscientes de como deviam se comportar naquele momento de tensão, sem perder o controle da situação. À porta do banco, segundo Marcos, a imprensa era amiga, salvaguardando a vida dos assaltantes; em seguida, se tornou inimiga, deturpando declarações dos presos.
Marcos, à sua maneira, apostou na caracterização do grupo como ingênuo e idealista. “Eu contava com apenas 22 anos”, disse demonstrando sua juventude presumidamente imatura. Reputou suas duas grandes influências na vida, àqueles que o estimularam a perseguir seu ideal revolucionário: “Rubens Lemos, meu pai, que foi preso político na década de 1970, e Ernesto Che Guevara”.
A sentença não foi igual para todos. José Wellington, Jari, Marcos e Cícero foram apenados com treze anos e dez meses de reclusão, mais o pagamento de uma multa no valor de 21 mil cruzeiros. Prestes de Paula e Telson, com sete anos e dez meses, mais 12 mil cruzeiros de multa.
O prestígio do sandinismo estava no auge entre nós |
Após a definição da sentença, havia pouco a fazer. Os militantes perderam o espaço que tinham na imprensa e suas aparições ali tornaram-se rarefeitas.
Individualmente, tentaram benefícios que certamente os ajudaram a resistir à vida na prisão. A partir de 1987, três deles conseguiram liberação da Justiça para estudar fora do presídio. Marcos ingressou no curso de Filosofia, José Wellington em Direito (para mais adiante especializar-se na área criminal) e Telson frequentou curso técnico de soldador oferecido pelo Senai. Os demais se dedicaram ao artesanato dentro da prisão".
OS LULUS INOFENSIVOS E O CACHORRO LOUCO
Para complementar, eis narrativa que fiz em Náufrago da Utopia (Geração Editorial, 2005), único livro que parece ter abordado a greve de fome.
[Vale, ainda, acrescentar que os cinco acabaram sendo expulsos do PT, o qual não lhes deu chance de apresentar defesa e só se preocupou com os danos à sua imagem pública, não movendo uma palha para evitar que sofressem arbitrariedades na prisão.]
Como escrevi boa parte do Náufrago na 3ª pessoa, refiro-me a mim mesmo pelo pseudônimo que então utilizava para driblar a censura do regime militar: André Mauro.
Sem mais delongas, vamos ao que interessa:
Rubens Lemos, banguela por cortesia dos torturadores. |
Seu filho e outros companheiros foram presos ao assaltarem um banco na capital baiana, alguns meses atrás. Dinheiro para a revolução, uma prática que já parecia extinta. Por serem todos petistas, a imprensa fez estardalhaço. E o partido, temendo que esse fato fosse explorado na campanha eleitoral, voltou as costas aos chamados quatro de Salvador.
O PT está obsessivamente empenhado em livrar-se da imagem de reduto dos antigos terroristas.
Na primeira eleição de que participou, em 1982, a lei eleitoral só permitia a exibição, no horário gratuito da TV, do currículo e foto de cada candidato. Os aspirantes petistas a deputados eram quase todos originários da resistência à ditadura — e orgulhavam-se disso, fazendo questão de destacar a condição de ex-presos políticos.
A direita, por sua vez, aproveitou ao máximo para insuflar preconceitos. Colocava em circulação piadas tipo “os candidatos do PT não estão mostrando currículos, mas sim folhas corridas e boletins de ocorrência”...
Então, na eleição de 1986, o que o partido mais queria era dar a volta por cima, projetando uma imagem de respeitabilidade. Quando a prisão dos quatro de Salvador ameaçou relacionar o PT com as expropriações outrora praticadas pela vanguarda armada, foi um deus-nos-acuda!
Lemos: "Foi um golpe brutal". |
Além de negar qualquer apoio a esses militantes, a tendência majoritária começou a reprimir e expurgar as correntes radicais abrigadas em suas fileiras. Pertencer simultaneamente à Articulação e ao PT continuou in, mas ser da Convergência Socialista e do PT virou out. Porta da rua é serventia da casa.
Os párias ficaram numa situação extremamente vulnerável — e os policiais, contrários à redemocratização do País, não desperdiçaram a chance. Agentes da Polícia Federal começaram a levá-los a outros Estados, sem mandado judicial nem comunicação a seus advogados, para serem mostrados a testemunhas de todos os assaltos a bancos ocorridos em passado recente.
Nem mesmo a Ordem dos Advogados do Brasil obtinha permissão para dar assistência aos prisioneiros nessas praças e acompanhar os reconhecimentos. Havia uma intenção óbvia de inculpá-los de tantos delitos quanto fosse possível.
A gota d’água foi o telefonema recebido por Rubens Lemos na rádio de Natal em que comandava um programa esportivo, alertando-o de que os explosivos recentemente roubados de uma pedreira se destinariam à simulação de uma revolta no presídio de Salvador; no meio da confusão, os quatro seriam assassinados.
Lemos fez essa denúncia no ar, abortando – se havia – tal plano. Quatro decidiram entrar em greve de fome a partir de segunda-feira. Dois dias antes, não há nenhum esquema de imprensa estruturado para fazer com que seu protesto repercuta nas principais capitais do País.
O comitê de solidariedade paulista é imediatamente formado. E André aceita ficar com a missão mais difícil: colocar a greve de fome no noticiário...
Começa enviando um comunicado à imprensa para cientificá-la da greve. Ninguém publica.
Convence Lemos a escrever uma carta emocionada à população brasileira, afirmando que, em face de seus (reais) problemas cardíacos, delega ao povo a missão de assegurar a sobrevivência do filho Cícero, caso não possa fazê-lo pessoalmente. Ninguém publica.
Visita deputados, redações, agências noticiosas. Na do Governo Federal, a Empresa Brasileira de Notícias, quem o atende é um agente do Serviço Nacional de Informações travestido de jornalista. Fazendo-lhe uma ameaça velada:
José Wellington Diógenes hoje é advogado |
— O tempo não está bom para os presos políticos e muito menos para quem já esteve preso. Se for pra jaula de novo, é bem provável que nunca mais saia. Ou ir direto pra baixo da terra...
Tem melhor sorte nos contatos com os correspondentes estrangeiros, que enviam algumas linhas a seus veículos. Mas é pouco para incomodar o governo brasileiro.
A cada dia, aumenta a apreensão no comitê de solidariedade. André atua em tempo integral, atirando em todas as direções.
Procura o procurador Hélio Bicudo, que já entrevistara para uma revista, e pede ajuda. Bicudo lhe dá uma apresentação para a Cúria Metropolitana de São Paulo. Acaba conseguindo uma carta anódina na Igreja, na linha de que por piores que hajam sido seus crimes, esses presos devem ter seus direitos respeitados. Ninguém publica.
Faz idêntica gestão na OAB, obtém uma carta igualmente cautelosa e também a distribui inutilmente aos jornalistas.
Manda um fax pessoal a todos os diretores-proprietários de veículos da grande imprensa, alertando-os de que, caso persista o boicote às notícias sobre a greve de fome, frustrando quaisquer chances de atendimento das reivindicações, caberá a eles a responsabilidade por qualquer tragédia que venha a ocorrer.
Quando já não sabe mais o que fazer ou a quem recorrer, o colunista que escreve sobre o Rio de Janeiro na página de Opinião da Folha de S.Paulo, Newton Rodrigues, dedica todo seu espaço daquele dia ao assunto. Diz que recebeu do jornalista Lungaretti uma denúncia consistente sobre violação dos direitos humanos dos quatro de Salvador, tendo repassado-a ao ministro da Justiça, Fernando Lyra.
André, que enviara o dossiê a Newton Rodrigues apenas por causa das posições libertárias que este assumia na coluna diária e do seu passado de resistência ao golpe de 1964, fica então sabendo que o veterano jornalista faz parte do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (...). Um golpe de sorte, no momento exato! Os quatro, segundo os médicos, começam a correr riscos mais graves!
No dia seguinte, Rodrigues relata a seqüência do caso: o ministro determinou ao governador da Bahia, Waldir Pires, que tome as providências cabíveis para que a greve de fome tenha um desfecho humanitário.
André e o comitê de solidariedade são informados de que o governador baiano oferece aos presos a garantia de não serem mais sequestrados pela Polícia Federal para reconhecimentos arbitrários, além de estar disposto a permitir que estudem ou trabalhem durante o dia, somente pernoitando na prisão.
Mas os quatro, empolgados com a mobilização de estudantes de Salvador em seu favor, pretendem prolongar a greve de fome por mais dois dias. Querem arriscar ainda mais a vida para desfrutar seu momento de glória, depois de terem sido vilipendiados pela própria esquerda!
André compreende seus sentimentos, mas considera o êxito político mais importante do que o desagravo pessoal. Então, na reunião do comitê, ele é incisivo:
André compreende seus sentimentos, mas considera o êxito político mais importante do que o desagravo pessoal. Então, na reunião do comitê, ele é incisivo:
— Estávamos sem perspectiva nenhuma e a vitória praticamente caiu do céu. Não podemos permitir, de jeito nenhum, que ela se transforme em derrota.
Decide-se mandar um ultimato a Salvador: ou os quatro saem imediatamente da greve, ou o comitê de apoio paulista vai mandar um comunicado a todos os jornais expressando sua discordância dessa postura.
É um blefe pois, a julgar pelos precedentes, ninguém publicaria. Mas, surte efeito. Depois de mais de uma semana sem alimentarem-se, os quatro são socorridos e se restabelecem plenamente.
Como recompensa por ter agido enquanto o PT se omitia, André recebe um insulto insólito do dirigente petista Rui Falcão:
— O Lungaretti e os quatro de Salvador são todos cachorros loucos!"
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