sábado, 22 de outubro de 2016

A DESINTEGRAÇÃO DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA INDEPENDÊNCIA E HARMONIA DOS PODERES

"Na mesma medida em que a perda de substância do sujeito do trabalho e do dinheiro tem por consequência a perda de substância do sujeito do Direito e do Estado, o próprio positivismo constitucional e jurídico ostenta os traços do poder autoritário e da barbárie violenta; a democracia converte-se no seu próprio estado de exceção, no qual desvenda o seu verdadeiro rosto." (Robert Kurz, em A guerra do ordenamento mundial)
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Num determinado momento da nossa história recente, o Congresso Nacional foi cercado por forças militares e fechado. Os que o cercavam eram pertencentes à estrutura do Estado; os que estavam cercados também pertenciam ao Estado. Tal fato era resultante da iminente possibilidade de ruptura institucional, fato desinteressante aos privilégios da elite nacional. 

A resultante foi uma intervenção do capital internacional (que havia ajudado financeiramente e com uma espreita militar naval na costa brasileira o desencadeamento do golpe militar e, depois, a gestação do fugaz milagre brasileiro como forma de se apascentar a ebulição provocada pela insatisfação popular que servia de fermento à convulsão social em curso.

A técnica romana milenar do panis et circenses sempre funcionou a contento quando aplicada à população inconsciente dos mecanismos sociais de sua opressão, e como forma de manutenção dela mesma. 

Agora, acabamos de assistir a um fato historicamente inédito: o Congresso Nacional ocupado por várias viaturas e membros das forças da Polícia Federal que, cumprindo ordem do Poder Judiciário, invadiram suas dependências em busca de comprovação de possíveis e prováveis interferências de membros do poder legislativo contra ações do dito Judiciário. Alguns policiais legislativos foram presos nas dependências do Poder Legislativo e muitos documentos e computadores apreendidos. 
Polícia Federal chega ao Congresso Nacional para buscar e apreender documentos...
A quebra da harmonia entre os Poderes da República é, hoje, explícita, ainda que os seus membros se esforcem em dizer o contrário. Observa-se uma explicitação da decomposição orgânica funcional do Estado pari passu à decomposição econômica e como reflexo desta última, pois, lembrando o dito popular de outrora, em casa que falta pão, todos brigam e ninguém tem razão.
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A DITADURA CONSTITUCIONAL
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Todas as atrocidades cometidas na chamada modernidade tiveram como substrato jurídico a norma constitucional, ou em pretensa defesa dela.

O partido nazista na Alemanha assumiu o poder legalmente, apoiando-se na norma constitucional que institucionalizou um discurso nacionalista excludente de agressão e assassinatos a cidadãos alemães judeus, comunistas e opositores, bem como de invasões que descambaram na 2ª guerra mundial e na morte de 60 a 70 milhões de pessoas. A máquina assassina nazista teve como condição essencial de sua legitimação o fato de ter exercido o seu poder mortífero dentro do cumprimento da norma jurídica então legiferada.

A ditadura militar brasileira assumiu o poder em 1964 a partir de um golpe militar que teve como justificativa a preservação da constituição ameaçada, para alterá-la três anos depois (1967) sob o arbítrio do autoritarismo político da doutrina defendida por um grupo militar de linha dura.  
...como se ainda estivéssemos sob o tacão da ditadura militar.
Este, vendo o crescimento da insatisfação popular, emendou-a no final de 1968 (Ato Institucional nº 5), para dar ao arbítrio maior sustentação jurídica-constitucional, com a ajuda do capital internacional, cujos vultosos investimentos viabilizaram uma euforia econômica que, de imediato, mudou o ânimo dos brasileiros, num momento em que poucos mas heroicos resistentes eram bestialmente dizimados.  

Por sua vez, a Constituição de 1988, nascida sob um poder constituinte jungido institucionalmente no caldeirão do anseio de um povo cansado da decadência econômico-institucional e sedento por franquias democráticas, nada mais produziu do que um conjunto de institutos jurídicos que hoje legitimam uma relação social injusta na sua essência e que tem no fetichismo da mercadoria o comando autoritário do sujeito-automático da forma-valor.  Embora a causa essencial da segregação social continuasse a mesma, a chamada Constituição cidadã foi sancionada em nome do povo e sob o pálio da sua pretensa vontade, representada pelos Deputados Constituintes.

Tudo isso demonstra cabalmente que não é a norma constitucional legiferada aquilo que proporciona a garantia de justiça social, ou da preservação ou dos direitos civis básicos, mas o que está subjacente à norma: a forma de relação social. Não é por menos que Thomas Hobbes firmou a citação latina auctoritas, non veritas facit legem, ou seja, é a autoridade, não a verdade, que faz a lei.   
A Constituição cidadã frustrou as esperanças despertadas

Servimo-nos destes conceitos e exemplos históricos para evidenciar que o apego ao cumprimento da lei socialmente injusta caracteriza o discurso conservador que ora toma corpo mundo afora, como tentativa de defesa dos privilégios de uns poucos contra qualquer ameaça endógena e exógena a tais privilégios por parte dos despossuídos do sistema.

As nações ditas civilizadas, que sempre viveram bem graças ao seu capital hegemônico, estão agora apavoradas com o desemprego estrutural no seu interior e com a dessubstancialização de suas riquezas abstratas; e reagem histericamente contra as levas de seres humanos colocados à margem do sistema produtor de mercadoria que se deslocam para seus territórios.

Trata-se de um fenômeno comum nas fronteiras dos Estados Unidos com países latinos, cuja mão-de-obra barata já não lhes interessa; e na União Europeia, contra os pobres do leste europeu, asiáticos de todos os matizes étnicos e africanos. O Brasil, ultimamente, passou de importador à condição de exportador de imigrantes e volta e se juntar aos coitadezas do mundo.

Com o capitalismo em crise se modificaram os parâmetros de hegemonia econômica pela conquista militar, embora a guerra de extermínio provocada pela disputa de um novo ordenamento econômico mundial esteja recrudescendo, até porque, adicionalmente, na guerra se compram e se vendem armas, e ainda se matam os imigrantes supérfluos e se toma a propriedade do petróleo (o aquecimento do planeta pela emissão de CO² que vá às favas!).
O drama dos imigrantes atinge proporções chocantes

Mas agora são os excluídos do sistema, tornados supérfluos por não produzirem valor e nem poderem consumir valor, que estão a invadir as ilhas outrora prosperas do capitalismo mundial, num processo de migração populacional continental jamais visto na humanidade. 

O acentuado êxodo da modernidade é um fenômeno inesperado para um capitalismo acostumado à exploração dos eternos pobres do mundo em seus locais de origem, constituindo-se numa invasão sem armas, meramente presencial e incômoda. Os errantes de nossa era são tratados como não cidadãos mal-vindos (afinal, no capitalismo somente se considera cidadão e bem-vindo quem tem dinheiro).

Neste contexto, a Constituição cumpre o seu papel conservador, mormente quando se lhe dá uma interpretação conservadora, pois, afinal, um mesmo fato social pode ter interpretações diversas a partir do interesse institucional que lhe é subjacente.

O estado de exceção ditatorial constitucional em momentos de crise explicita o que é a democracia burguesa em crise, comprovando a saturação do atual modelo de relação social. (por Dalton Rosado)

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