sábado, 13 de agosto de 2016

UM CONTO DE APOLLO NATALI: "DESAJUSTE".

É preciso uma boa razão para se contar uma história. Há ocasiões em que não vejo razão nenhuma para se contar história nenhuma. Mas trata-se de um amigo. Dos melhores, mais antigos e sofridos. Trata-se de um amigo. Eis a boa razão desta história.  

E nem tenho muito a dizer sobre ele e sua mulher. Eles é que viveram sob o mesmo teto. Quando um casal vai dormir, fecha a porta. Só usando a imaginação posso compor esta novela. Unindo os poucos pedaços de sua vida íntima que me foram dados a conhecer posso arriscar a dizer que ele muito amou e pouco foi amado.  Talvez nem tenha mesmo muito amado e pouco amado.

Ingênuo é aquele que suspira por um amor duradouro neste fim dos tempos, em que a mulher é julgada sob o ângulo absolutamente sexual, vista como um objeto de utilização passageira, usada e jogada fora. Mas vocês sabem, o amor existe, é bonito, tão bom, embora tenha alcançado tão alto índice de mortalidade. Falo a quem tem coração e sei que sou compreendido.

De mais a mais, era no tempo de São Paulo antiga, antes da chegada do total do cinismo e da perversão ao mundo. E tinha o balcão no velho sobrado, a varanda, e meu amigo usava colarinho engomado, palheta, cabelo esticado e bigode enrolado para cima. E havia os cabriolés para lá e para cá, lentos, como uma pintura de carrossel encantado, a transportar damas de bustos enormes, vestidas de negro, olhares parados. Por toda parte, corações amantes.

E ele cantava. Em festas íntimas, na rua, no trabalho. Quando me diziam que chegava do serviço à tardinha, e saltando e rindo improvisava uma rápida e movimentada serenata para a sua velha mãe à janela, permito-me acreditar que era afetuoso e sentimental e que passava pela vida manso e tímido. E ele cantava: acorda, amada minha, que o ar é doce...

O herói desta aventura era gerente de uma grande indústria. Eu, ainda criança, fui dar um recado em sua casa. Um misterioso sentido extra que tenho desde pequeno e que todo mundo tem, de sentir mentalmente os problemas alheios sem que me contem, e que me confundiu imensamente na adolescência e juventude, me revelou, quando nossas atmosferas individuais se entrecruzaram, que a vida dele era correr atrás daquela que eu tenho de chamar de heroína deste drama. Poucas vezes a via e pouco continuei a vê-la, com o passar dos anos.

Morena daquelas de se ver em antigos medalhões com correntinha, tinha densos cabelos pretos, cacheados, olhos escuros de jabuticaba, magra. Era bonita, mas preferia não tê-la achado feia. Seu rosto era uma máscara, não um semblante. Algum sentimento contrário à perfeita natureza humana a possuía. Os belos traços de seu rosto escondiam a dureza de expressão que caracteriza a raça humana. Tinha de ser uma boa moça, porque creio que o sofrimento sempre aformoseia a alma.
Ouvi dizer que nosso herói chorava, escondido. E que nossa heroína era sempre calada, tanto quando mexia o arroz, bordava ou ia ao teatro. Parecia estar sempre pronta para uma guerra. O ressentimento é um vírus de difícil destruição, uma força da natureza, atuante, com poder de destruir sorrisos. Moravam numa rua pequena, toda de sobrados dos dois lados, brancos e limpos. Quem olhasse para aqueles ninhos de amor todos iguais não diria que a felicidade é apenas uma ficção.

Nosso herói ia regularmente pescar com os amigos. Diziam que levavam mulheres para o rancho à beira do rio. Quem sabe a verdade. Ninguém consegue jamais traçar a sorte de um malvado com tanta eloquência do que a língua do povo.

Ele se vestia impecavelmente. Era um homem formidável para as mulheres que adoram passar a vida ao lado de um boneco perfumado. Imagino mesmo que se perfumava até para ir pescar. Vejo-o de pé no barranco perto da correnteza, um gigante de bigode fino de artista, cuidando para não molhar a roupa e, assim, jogar a isca e esperar o peixe, tomado de uma imensa compaixão por aquele que mordesse o anzol. O pensamento na morena do medalhão. Na boca do povo, possuía tudo, menos um bom coração.

Regime de separação de corpos. Quando jovem, essa espécie de sentença condenatória para um pai e uma mãe, soou-me com um sortilégio em relação ao meu amigo. Quem faz, paga. Os boatos eram silenciosos. Na minha excitada imaginação juvenil, em plena idade das paixões, os dois amantes me pareciam dois prisioneiros de velha escuna, velas esfarrapadas, perdida em nevoeiro, solitária, água fria com espuma batendo no casco imundo de suas vidas. Tal era a minha ingênua  imaginação.

O moço bem vestido de bigode fino nunca disse de viva voz o que o amargurava. Parecia preparar terreno para, quando chegasse a hora da verdade, dizer que aquele que dá conselhos é melhor ouvido quando pode provar que suportou mais e suportou sem se queixar. Já naquela época de compridas cartolas empinadas nas cabeças dos homens, os complexos da adolescência me faziam aceitar a filosofia do tempo das cavernas, de que a mulher que se ama, que diabo, não se pede, se toma. Um homem assim é um fraco, aprendi depois.

Cena: a morena caminha pela casa, em silêncio. Indiferente, cruza com ele. Ele a segue com o olhar, o peito fechado. Meu Deus, que momento esse. A esperança é a única amiga dos que vivem em torturas prolongadas, sem viver nem morrer. Por parte dos dois, poderia haver quem sabe, como dizia o povo, os pecadinhos cometidos às ocultas, que a moral humana admite sorrindo. Relações extraconjugais, talvez, como se diz delicadamente.

O que ouso dizer é que não existe dor que não se possa suportar e que é horrível a visão constante daqueles a quem fizemos o mal. Se o boneco chorava, lágrimas lavam faltas. Se a morena de cachos negros era ressentida digo o que ouvi dizer, que é horrível tudo se dever a quem se detesta. Eu queria ouvir de viva voz o que aquele pecador tinha a dizer. Paralisado de tristeza, porque para mim o desajuste de casais é a areia movediça da vida, falei, de modo até um pouco provocativo: o casamento e uma droga, não?

Seu sorriso me contou que ele se sentiu feliz por eu ter lhe dirigido essa pergunta. Respondeu, sério, que o casamento, entre os muitos caminhos deste mundo, é o mais iluminado. Amo minha mulher e meus filhos, disse. Caminhos escuros são ter filhos desconhecidos, abandonar as crianças, viver em promiscuidade, apanhar doença, gastar dinheiro naquilo que não é pão, usar a saúde, a energia e o amor fora de casa. O homem é mais sensível ao mal do que ao bem e isso explica minha surpresa.

O tempo passando, ele firme na gerência da grande indústria, morando na mesma rua de pequenas casas brancas iguais e de corações amantes em todos os cantos, em festas, pescando, namorando a arredia esposa. Nunca cheguei a nenhuma conclusão sobre o tipo de ligação enraizada que os unia. Principalmente quando me contam o que aconteceu no hospital quando ele foi internado.

Ele perguntou aos filhos porque ela não tinha ido vê-lo. Olhos parados, fixos no teto, disse molemente que a vida não valia a pena. Quando foi encontrado morto, sem os esparadrapos nos pulsos, os tubos de soro soltos, os medicamentos espalhados e ele no chão, a enfermeira garantiu que ninguém tinha entrado no quarto.

Esta historinha poderia muito bem terminar por aqui. Não pode. Somos todos levados a pelo menos imaginar o que aconteceu. Não temos a fórmula da verdade, mas podemos supor que no momento mais amargo do abandono, como um cão batido, sem a misericórdia da atenção de quem amava, ele tenha decidido.

O gesto, então, foi cego e brusco. Num ímpeto de dolorosa amargura, deve ter arrancado os esparadrapos e os fios de soro, espalhando os remédios loucamente. Tentando se erguer e correr, pode ter caído. Depois, esperou. A morte é pontual. Ela chegou. Como um pesadelo que dura apenas o tempo de se dar um suspiro.

Ainda a solidariedade que deve existir entre todos os seres, não permite terminar este caso aqui. Um jogral de muitas vozes se insinua a recitar versos que falam de fugidias dúvidas. À beira do túmulo, podemos supor que aquele que o povo julga malvado esteja no inferno. Não esse inferno tradicional, que tem por toda a parte caldeiras ferventes, cujas tampas disciplinados auxiliares do diabo erguem de vez em quando para gozar com as contorções dos condenados.

E Deus, insensível e mudo, convivendo democraticamente  com esses engenhosos adversários divinos de curiosa profissão liberal no Universo. E ouvindo sem piedade os propalados gemidos por toda a eternidade, porque os condenados desse inferno vivem, e vivem para sempre. Não acredito num inferno como esse.

Imaginemos então que o moço abatido por uma perdida paixão esteja no inferno dos pagãos, mais racional, que reza que o homem é o filho de suas próprias obras. Trazemos dentro de nós o nosso céu e o nosso inferno. O culpado é punido pela própria falta. Somos nossos próprios juízes e é por nossa decisão que colocamos um paradeiro nas nossas torturas. O inferno é um modo de ser.  Nesse inferno, dizem, a recordação equivale à realidade. O culpado aplica o castigo a si mesmo até aprender que o céu é a indulgência em todas as ações na Terra. Os que sofrem por nossa causa vão para o céu.

Ainda não é o momento de parar de imaginar. Tudo pode acontecer no reino da imaginação. Por exemplo, conta o poeta, e faço minhas as suas palavras, que para esse inferno racional onde talvez esteja o meu amigo, foi mandado um rei, cujo tormento único era se lamentar por ter inventado cada dia novos prazeres para tornar sua vida mais deliciosa. Era, então, jovem e robusto.

Muito ainda lhe restava para gozar sobre o trono. Mas oh, desgraça! Uma mulher que amou e que não o quis, logo lhe fez sentir que ele não era nenhum deus. Ela o envenenou. Pomposamente, suas cinzas foram guardadas numa urna dourada. Ela chora, arrancando os cabelos.

Arrependida, porque toda mulher, no fundo, no fundo, talvez se arrependa por desprezar um grande amor, ameaçou se atirar nas chamas em que o incineravam, para morrer com ele. E ainda hoje é vista a chorar aos pés da urna dourada em que lançaram suas cinzas. Ela o envenenou. Hoje ele nada mais é. (por Apollo Natali)

Nenhum comentário:

Related Posts with Thumbnails