Paris é apelidada de cidade luz, mas nela nem tudo reluz... |
"O pato
Vinha cantando alegremente
Quém! Quém!
Quando um marreco sorridente
Pediu pra entrar também
No samba, no samba, no samba"
(O pato, de Jayme Silva e Neuza
Teixeira, um grande sucesso de
João Gilberto na bossa nova)
Os jornais e televisões anunciam: Paris amanheceu coberta de lixo nas suas ruas. Estão em greve os funcionários públicos, os motoristas de táxi e os controladores de tráfego, por terem perdido poder de compra, por medo de atentados do Estado Islâmico, por indignação com as enchentes (o rio Sena transbordou).
Se assim é na França, um país integrante do G7 (grupo dos mais ricos do mundo), não é de se estranhar os absurdos níveis de miséria e decomposição social na África, na Ásia e em muitos outros países da periferia capitalista. Nesse contexto, o Brasil, 8ª economia do mundo, apresenta números de falência estatal e recessão econômica que o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, considera tão ou mais graves que os da grande depressão de 1929/década de 30, que levaram o mundo à II guerra mundial.
Qual a relação entre as enchentes francesas e a seca do nordeste?
Qual a relação entre as micros-explosões em nuvens que alagam São Paulo, os tornados que destroem casas no interior do Estado e a degeneração cínica da política, que agora admite a preservação do mandato parlamentar de corruptos flagrados com contas milionárias no exterior?
Calheiros e Cunha: "degeneração cínica da política". |
Qual a relação entre a ascensão eleitoral de um xenófobo racista como o bilionário Donald Trump e o pêndulo da ineficácia que faz o mundo transitar entre governos de direita e esquerda sem que se altere a caminhada cada vez mais célere para um retrocesso civilizatório sem precedentes?
Qual o ponto de ligação entre essa desagregação político-social, os fenômenos meteorológicos e a poluição ambiental?
Todos esses fenômenos resultam da genocida disfunção entre forma e conteúdo da relação social.
Há um pensamento muito comum e induzido pela ordem mercantil e político-institucional estabelecida e corroborada pela mídia chapa branca e pelo sistema educacional básico e acadêmico conservador e anticientífico, que consiste em atribuir-se a débâcle social unicamente à corrupção política e aos desmandos administrativos dos governos.
Tal raciocínio tenta colocar unicamente nos ombros da má administração estatal e à corrupção com o dinheiro público a ocorrência da crise, e não à contradição inerente ao atual estágio de anacronismo do sistema produtor de mercadoria.
Trata-se de uma avaliação análoga à que muitos fizeram da crise do sistema financeiro de 2008/2009, como se ela derivasse apenas da ganância e da ação especulativa e irresponsável dos banqueiros, excluindo-se as suas causas estruturais.
Bolsa de Nova York no auge da crise de 2008 |
A especulação, a corrupção e a irresponsabilidade, que existem, são apenas subprodutos de uma questão maior: o anacronismo da corrupção em si da vida mercantil, ora decadente por seus próprios fundamentos.
A razão de base da falência sistêmica (do Estado; da política; do sistema previdenciário; do sistema financeiro; e da chamada economia real) é a seguinte:
- o atual estágio da produção tecnológica de mercadorias a partir do uso da microeletrônica, potencializou ao extremo os níveis de produtividade e tornou supérfluo, substancialmente, o trabalho abstrato produtor de valor;
- ou seja, há uma disfunção, na medida que o trabalho morto das máquinas, não produtor de valor, toma empregos dos trabalhadores vivos e causa desemprego estrutural;
- como uma coisa já não casa com a outra, o capitalismo está cortando o galho sobre o qual se assenta, o que só pode trazer, como consequência, sua queda abrupta.
Explico melhor. A disfunção a que ora nos reportamos se estabelece como resultado da contradição entre forma e conteúdo da relação social estabelecida, e a partir de dois segmentos inter-relacionados:
Uma previsão inesquecível do Lula |
a) Já é impossível a satisfação plena da maioria da população nas suas necessidades de consumo de riqueza material (consumo alimentos, água, energia, vestimenta, habitação, transporte, educação, etc.) graças ao mecanismo de mediação social expresso na produção de objetos de consumo transformados em mercadorias (riqueza abstrata) aos quais se atribui um determinado valor sobre critérios de valoração a partir da mensuração do tempo de trabalho abstrato neles empregado (também uma mercadoria), em razão da viabilização da produção dessas mercadorias a partir de critérios tecnológicos não produtores de valor. Assim, o próprio valor se tornou incapaz de se reproduzir substancialmente no mercado;
b) à forma de relação social mercantil estabelecida, na qual há uma indispensável e despótica participação político-institucional do Estado como esfera mantenedora manu militari; regulamentadora legiferante; e indutora a partir da produção de infraestrutura (estradas, portos, etc.) e financiamentos públicos (vide BNDES no Brasil), se contrapõe a inviabilidade material de funcionamento institucional por insuficiência de recursos, pois somente se arrecadam impostos com produção mercantil impossível de ocorrer se se prescinde da produção de valor/trabalho abstrato. Assim, como pode o aparelho estatal se irrigar e irrigar o fluxo monetário mercantil sem o sangue vital (valor/dinheiro dos impostos) à sua existência? Somente pode fazê-lo a partir da emissão de dinheiro sem lastro, como hoje ocorre, prenunciando um colapso gigantesco iminente.
Saímos da sociedade comunal primitiva, na qual tudo se partilhava e passamos para um longo período da sociedade escravista direta, na qual uma parte maior dos seres humanos era submetida ao tacão da propriedade como se fossem animais; transitamos para a sociedade da escravidão indireta (mais sutil, ou menos afrontosa) do trabalho abstrato, ora tornado desnecessário em sua maior parte e decretamos (mesmo sem o desejar) o fim dessa forma de relação social.
A sociedade de um futuro que já bate às nossas portas terá de criar mecanismos de produção e distribuição absolutamente diferentes dos atuais, socialmente viáveis e ecologicamente sustentáveis.
Além, é claro, de muito menos sacrificantes, pois o auxílio da tecnologia, ao invés de nos sufocar, deve servir para nos libertar. A questão não é sabermos quem vai pagar o pato, mas superarmos o próprio pagamento do pato. (por Dalton Rosado)
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Um comentário:
Dalton, sua visão é precisa do móvel que decretou o fim do trabalho e da mais valia.
Contudo, creio que o uso da primeira pessoa do plural em relação aos avanços tecnológicos é incorreta.
Não fomos "nós" os que realizaram esses avanços, foram "eles" os cientistas!
Eles usaram o método científico e avançaram até o nível em que estão.
São a nova e emergente classe dominante.
Platão queria que fossem os reis filósofos, mas foram os seus coveiros que chegaram ao ápice.
Nós? Nós temos que pensar como essas mentes brilhantes pensam.
Abrir os olhos para o que de bom está acontecendo!
Eles ainda não nos exterminaram!
Algo querem conosco.
Ou são fracos.
O que duvido muito.
Assim, mesmo podendo estar errado, acredito que esses novos senhores serão muito mais elegantes no desenho da sociedade do que os antigos.
Pelo menos a estética deles é melhor do que a da burguesia.
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