Um viajante, considerado cidadão pela União Europeia (afinal tem passagem de ida e volta de primeira classe em voo internacional, reserva em hotel cinco estrelas, dólares na valise e cartão de crédito internacional com limite alto), faz uma viagem de férias pela Europa, onde foi bem recebido, e se diz encantado com a civilidade do povo europeu e com a sua rica história civilizacional, culinária de 1º mundo e vinhos de boa safra.
Outro viajante, que fugindo da guerra e da fome atravessou o mar numa balsa repleta de gente, com risco de naufrágio iminente, exposto ao frio e à fome, consegue chegar à costa da mesma Europa com pouco dinheiro em moeda do 3º mundo, com passaporte sem visto de entrada, pretendendo lá permanecer, e é recebido pela polícia, sem ser considerado cidadão. Esse segundo ser humano não precisa fazer um relato sobre seus dias após o desembarque: todos nós sabemos que a civilizada Europa lhe reserva um muro de rejeição.
Para a moderna civilização capitalista a cidadania tem critérios de seleção:
- há aquele com recursos (considerado cidadão) e o imigrante (considerado um intruso);
- há quem considere que há seres humanos respeitáveis e produtivos e também seres humanos supérfluos;
- há quem seja contributivo economicamente e quem seja apenas uma boca a mais para ser alimentada e sem produzir valor. Tal comportamento reflete apenas o que ocorre no interior dos países, onde essa cisão social é também flagrante, pois, afinal, numa mesma cidade, há bairros com 100% de esgotamento sanitário e muitos outros com esgoto a céu aberto; bairros com ruas bem pavimentadas e sinalizadas, e outros com chão batido e esburacado; quem more em edifícios luxuosos e muitos outros que moram em favelas; cidadãos de primeira classe e outros cuja cidadania é um mero número de CPF isento do pagamento de imposto de renda;
- há quem veja as sociedades mercantis, capitalistas, e os poucos países ricos (que correspondem a uma pequena percentagem do todo da população mundial) como exemplo a ser seguido, admitindo, implicitamente, que os que não atingiram tal estágio, assim o são por suas próprias culpas, pois, afinal, não são ricos porque são preguiçosos, ignorantes, incapazes e intelectualmente subdesenvolvidos;
- há quem não entenda (ou não queira entender) que a lógica mercantil, necessariamente, promove a riqueza abstrata e material de uns poucos na razão direta da pobreza da grande maioria;
- há quem busque num absurdo fundamentalismo religioso que mata em nome de Deus e que promove o recrudescimento do arcaico, a saída contra a miséria das regiões deserdadas da ordem capitalista mundial;
- há quem jamais compreenda que a concentração da riqueza por uns poucos (e cada vez mais mundialmente concentrada) deriva da apropriação indébita por esses poucos da produção coletiva mundial de valor (dinheiro e mercadorias);
- há quem considere que são os ricos os benfeitores sociais, os que dão os empregos, e que sequer imaginam que são os empregados, subtraídos pela extração de mais-valia, os que produzem as suas riquezas e que esses mesmos rios dependem unicamente da reprodução do trabalho vivo (dos trabalhadores) para manterem válidos os valores que detêm (não há valor sem sua reprodução contínua de trabalho objetivado);
- há os que querem que esse tipo de relação social fundada na esperteza da produção de mercadorias produza bons frutos, e que as suas contradições em processo não venham à tona, tal qual um bumerangue, sob a forma de violência urbana, depressão econômica, decomposição moral, institucional e ecológica.
(por Dalton Rosado)
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