quarta-feira, 4 de novembro de 2015

A DITADURA COMEÇOU A RUIR COM O MARTÍRIO DE VLADIMIR HERZOG

No dia 25 de outubro de 1975 morreu sob tortura Vladimir Herzog -- como dezenas de outros idealistas que foram vitimados pelos  acidentes de trabalho  nos porões da ditadura.

Isto para não falar dos executados a sangue-frio e dos que tombaram  sob os tiros da repressão, às vezes sem esboçarem a mínima reação, como Carlos Marighella.

Por que a morte do Vlado  repercutiu tanto?  

A de outros jornalistas, como Mário Alves e Joaquim Câmara Ferreira, não despertou tamanha comoção na época. E ambos morreram de forma igualmente chocante: Câmara Ferreira se atracando com os torturadores para forçar um ataque cardíaco, enquanto Mário Alves sofreu um verdadeiro massacre, chegando  a ser empalado com um cassetete dentado.

Há vários motivos para o caso do Vlado ter sido mais emblemático.

Primeiramente, chocou e até hoje choca sabermos que ele se dirigiu pelas próprias pernas ao encontro da morte, acreditando que sofreria apenas o interrogatório para o qual estava convocado.

Por que ele não desconfiou de que poderia ter o mesmo destino que tantos tiveram antes dele? 

Por um motivo simples: em 1975 a tortura já arrefecera, pois a esquerda armada havia sido totalmente dizimada.

O auge da tortura se deu no período 1969/73, quando os militares reagiram ao enfrentamento aberto da esquerda estruturando a Operação Bandeirantes e os DOI-Codi's, que, inicialmente, se incumbiam apenas dos militantes da vanguarda armada. As organizações desarmadas, como o velho PCB, continuaram sendo por bom tempo atribuição dos Deops, que ainda se mantinham dentro de certos limites.

Cair  na Oban significava não ter garantia nenhuma de sobrevivência, estar totalmente à mercê dos verdugos, enquanto no Deops só se morria por excessos praticados eventual e involuntariamente durante a tortura. Uma pequena diferença, mas significativa para quem caminhava no fio da navalha.

A Oban nasceu clandestina -- montada por oficiais das três Armas e policiais civis, com financiamento de empresários fascistas -- e foi legalizada após alguns meses, passando a funcionar , sob a denominação de DOI-Codi, em quartéis da Polícia do Exército (com exceção de São Paulo, onde continuou operando nos fundos de uma delegacia da rua Tutóia). 

Mesmo assim, desde o primeiro momento, tinha mais poder do que a estrutura legal dos Deops, chegando a arrancar presos políticos de suas mãos quando bem entendia.

Para seus integrantes, oferecia ganhos fabulosos e, no caso dos militares, a perspectiva de ascensão meteórica na carreira.

A esquerda armada expropriava bancos, executava operações altamente rentáveis como o roubo do cofre do ex-governador Adhemar de Barros. Então, seus integrantes às vezes tinham somas vultosas consigo. Na VPR e VAR-Palmares, p. ex., cada combatente dispunha de um substancial fundo de reserva, que deveria ser mantido intocado até uma circunstância extrema, como a de ele ficar descontatado e ter de fugir do País.

Dinheiro, armas, veículos e até objetos de uso pessoal dos militantes dessas organizações eram, por sua vez, expropriados pelos captores, que os dividiam a seu bel-prazer, nunca o restituindo aos proprietários expropriados.

Além disto, os empresários financiadores da repressão contribuíam para as  caixinhas  de prêmios pela captura ou morte de militantes clandestinos. Cada revolucionário importante tinha o valor previamente fixado, daí o empenho obsessivo dos rapinantes em chegar até eles. O bolo era dividido segundo a importância de cada qual no esquema repressivo, sobrando algum até para os carcereiros...

VERGONHA DA FARDA 

Com a derrota da luta armada, o presidente Ernesto Geisel pretendia ir desmontando aos poucos esse estado dentro do estado. Militar de mentalidade prussiana, não admitia a existência de um poder paralelo "envergonhando a farda".

Ora, os rapinantes haviam se acostumado com um padrão de vida muito superior ao que lhe possibilitava seus soldos e já não conseguiam mais viver sem a rapina -- tanto que a notória equipe de torturadores da PE da Vila Militar do RJ envolveu-se com contrabandistas em 1974 e acabou sendo presa, interrogada... e torturada, provando um pouco do próprio veneno.

Então, para atrapalhar a distensão lenta, gradual e progressiva de Geisel, que incluía a desmontagem do aparelho repressivo de exceção, passaram a efetuar provocações que, esperavam eles, fariam a esquerda reagir; poderiam, então, alegar que continuavam sendo úteis e necessários. Valia tudo para despertarem o fantasma do comunismo que lhes era tão vantajoso.

Assim, uma base do PCB que fora formada na ECA/USP e se expandira com o ingresso de seus membros na carreira de jornalistas -- continuando, entretanto, bem longe de representar uma ameaça real ao regime -- acabou sendo escolhida como um dos principais alvos de uma suspeitíssima escalada de prisões de peixes pequenos, desencadeada em outubro de 1975. 

E o pobre Herzog talvez tivesse papel de destaque nas tramoias dos provocadores, por ser um professor muito querido, com o qual os universitários presumivelmente se solidarizariam, uma vez preso.
A missa oficiada por religiosos de 3 confissões na Sé


Como a ECA era tida pela repressão como um celeiro de subversivos e nela certamente existiam agentes infiltrados, é difícil acreditar que essa base não constasse dos relatórios policiais havia muito tempo. O fato é que, até o final de 1975, não existiu interesse em estourá-la.

Aí, de repente, a repressão se deu conta de que a ditadura começaria a ser derrubada pela  insidiosa infiltração subversiva na TV Cultura, com seus 1% de audiência em São Paulo...

Vlado, coitado, não levou em conta os bastidores do regime e seguiu confiante para o matadouro. Até pela estima que lhe devotava o governador Paulo Egydio Martins, estava certo de que em seu caso não abririam a  caixa de ferramentas. Quão pouco valia a vida de um homem!

Os torturadores, ao excederem a dose, causando-lhe a morte, despertaram a indignação mundial -- para o que também concorreu a ascendência judaica da vítima, repetindo em escala ampliada o que já sucedera no final de 1969, quando da morte sob torturas de Chael Charles Schreier, militante da VAR-Palmares. Judeus são muito sensíveis à morte dos seus em circunstâncias semelhantes às do Holocausto.

Geisel e seu fiel escudeiro Hugo de Abreu aproveitaram a chance para minar o DOI-Codi sem despertarem resistências na caserna. O presidente deu ao II Exército o ultimato de que não poderia deixar uma morte como aquela se repetir.

Antes que se completassem três meses, os torturadores erraram a mão de novo, despachando para o túmulo o metalúrgico Manuel Fiel Filho, também do PCB. Forneceram a Geisel motivo suficiente para exonerar o comandante do II Exército Ednardo D'Ávila Melo e desmontar o DOI-Codi, robustecendo seu projeto de abertura política.

Por último, devem ser lembrados: 
  • o cansaço dos cidadãos que viviam sob terror policial desde 1969 e já não aguentavam mais o clima de autoritarismo e intolerância, mesmo porque, visivelmente, não havia mais uma ameaça verdadeira ao regime; 
  • a resistência dos jornalistas, que afinal se avolumou; e
  • e a coragem dos líderes religiosos de três confissões, que correram todos os riscos para, com a realização de uma missa ecumênica pela alma de Herzog na catedral da Sé, impedirem que mais esse assassinato fosse acobertado pela ditadura.
FEITIÇO CONTRA O FEITICEIRO 

Nem assim as tentativas de inviabilizar a redemocratização do Brasil cessaram de todo. Em 1976 houve atentados a bomba contra o semanário Opinião, a ABI, a OAB e a residência de Roberto Marinho, além do sequestro e espancamento do bispo de Nova Iguaçu e do massacre dos militantes na gráfica do PCdoB.

Em 1979/81, a ação dos grupos paramilitares de direita se intensificou, com novos ataques a entidades e cidadãos ilustres (como o jurista Dalmo de Abreu Dalari) e até os bizarros incêndios de bancas de jornais em que eram vendidas publicações alternativas.

Até que, em 30 de abril de 1981, o feitiço virou contra o feiticeiro: a bomba explodiu no colo do terrorista fardado que pretendia provocar pânico de conseqüências imprevisíveis durante em show musical no Riocentro. A maré mudou e a redemocratização foi consolidada.

Vlado merece todas as homenagens que continua até hoje recebendo e outras mais. 

E é alvissareiro que se estejam prestando tributos semelhantes aos combatentes que enfrentaram a ditadura com armas na mão e morreram às centenas (inclusive executados friamente em aparelhos clandestinos da repressão, como a Casa da Morte de Petrópolis/RJ).

Deve mesmo ser dado o justo reconhecimento a todos aqueles que, em situação de extrema inferioridade de forças, enfrentaram os fascistas que derrubaram um presidente legítimo, fecharam o Congresso, cassaram mandatos, rasgaram a Constituição, proscreveram partidos e organizações da sociedade civil, praticaram a censura, torturaram, mutilaram, mataram e ocultaram cadáveres.

E que nunca mais a liberdade dos brasileiros tenha como preço o sacrifício de cidadãos tão valorosos como Herzog, Câmara, Carlos Marighella, Carlos Lamarca, Rubens Paiva, Juarez Guimarães de Brito, Zuzu Angel, Iara Iavelberg e outros que tanta falta fazem hoje ao povo brasileiro!
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6 comentários:

Anônimo disse...

tambem nunca entendi por qual motivo o caso de herzog teve todo esss repercursao,ja que as morte em instituiçoes do governo ja eram conhecidas pela sociedade,por que dai nao se aproveitou o abalo da opiniao publica para derrubar o contorno de geisel,nao seria mais facil usar o seu caso em especifico para punir torturadores pontualmente,antes de se pedir anistia irrestrita?por que a sociedade ou as organizaçoes nao tiveram esse poder,na epoca?

celsolungaretti disse...

O Geisel enfrentava muita resistência à sua abertura, então preferiu o caminho menos espinhoso da libertação de prisioneiros e permissão de volta dos exilados.

A esquerda também considerou que a prioridade fosse esta. Até aí, tudo bem. Mas, na minha opinião, não deveria ter aceitado a tese da anistia mútua, nem admitido, num primeiro momento, que excluídos da anistia os companheiros condenados por ações armadas.

O segundo erro ainda deu para corrigir adiante. O primeiro se eternizou.

Anônimo disse...

entao voce concorda que faltou um pouco de esforço ou foco da esquerda pra derrubar um regime que ja estava cambaleante,claro que nao vou comparar minha visao com quem viveu a epoca,mas como sou interessado pelo assunto,tudo me leva a crer que seria possivel naquela ocasiao um contragolpe da esquerda se unindo com os movimentos legalistas,dai entao convocar eleiçoes e colocar na cadeia os torturadores e patrocinadores do regime,agora fui fundo na minha utopia,quase naufraguei,abss

celsolungaretti disse...

Não parecia ser possível irmos tão longe. Mas, a emenda das diretas-já poderia, sim, tersido aprovada no Congresso, se o Tancredo Neves não a tivesse SABOTADO.

Havia parlamentares suficientes do PDS dispostos a pularem para o barco da oposição, mas Tancredo orientou-os a permanecerem onde estavam e votarem contra a emenda Dante de Oliveira.

Aí, quando ficou totalmente descartada a eleição direta, esse grupo desertou do PDS e somou-se aos apoiadores do Tancredo. Foi assim que um político sem carisma nem voto se tornou o presidente da saída da ditadura, ao invés do Brizola, franco favorito numa eleição direta.

Essa tramoia bem sucedida resultou nos péssimos governos de Sarney e Collor, além de garantir a impunidade dos torturadores e assassinos do regime militar.

Quanto a 1979, o que a esquerda deveria ter feito é não aceitar que a anistia dos resistentes tivesse como contrapartida a impunidade dos agentes da repressão. Como o ciclo militar estava visivelmente esgotado, acredito que, se a chantagem fosse recusada, eles acabariam por libertar os presos políticos da mesmíssima forma. Era um passo indispensável para a redemocratização do País.

Enfim, a percepção no calor dos acontecimentos foi a de que a campanha das diretas-já era o máximo que eles engoliriam naquele instante. Mas, se os canalhas do Congresso não houvessem se comportado da forma mais desprezível possível, acredito que haveria eleições diretas, sim. Depois de terem permitido que a emenda fosse votada, não haveria clima para um recuo.

Foi um dos piores momentos da História brasileira, quando tínhamos uma opção digna a fazer e medramos. Comparável a termos virado as constas aos inconfidentes e depois engolirmos aquele arremedo de independência made in England.

Eduardo Rodrigues Vianna disse...

Os reacionários tinhm muito medo de que aparecesse algum Alfonsín brasileiro, e tinham verdadeiro pavor de Brizola, a quem a esquerda brasileira parece ter esquecido: faz falta, hoje, algum movimento próximo do brizolista, nacionalista de esquerda, rico em repertório. Sou simpático a uma ideia desse tipo, semelhante à brizolista.

Quanto ao assassinato de Vlado Herzog, foi um fato político importante, capaz de mobilizar gente àquela altura. A conversa sobre Democracia, no Brasil, deve se revestir da memória e dos feitos de grandes homens e muheres como ele, e deve avançar: Democracia, numa sociedade como a nossa, apresenta sempre um conteúdo altamente revolucionário.

Para reconstruir a esquerda, o que demandará tempo, precisamos trabalhar pela criação de um refinado pensamento a respeito do Brasil, avançado, criador, procurando recuperar a grande tradição de Alberto Guerreiro Ramos (autêntico nacionalista revolucionário embora crítico do brizolismo, um sujeito interessantíssimo), Mauro Marini, Moniz Bandeira, Anísio Teixeira, entre outros, empurrada para o limbo pelo regime de 64. Afirmo que há gente boa engajando-se em torno a este propósito, e haverá muito o que dizer a respeito.

Anônimo disse...

eu sempre soube que o tancredo era um acordeiro de bastidores foi assim na legalidade em 61 qdo o jango assumiu voltando da china ele,assumiu de 1°ministro,qto as diretas oque sei a repeito è que se a emenda Dante de O liveira passasse o governo decretaria estado de sitio que nao se pode emendar a constituiçao,com isso daria segmento ao poder na mao dessa direita infame.

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