quinta-feira, 1 de outubro de 2015

"A EXPERIÊNCIA": UM FILME QUE MOSTRA O QUANTO O AUTORITARISMO É LATENTE NO HOMEM COMUM.

Antes de 1968, quando a ditadura ainda não fizera sua opção pela bestialidade como norma, dizia-se que os riscos de cometimento de excessos não advinham dos altos comandantes militares, mas sim dos inspetores de quarteirão --aqueles detestáveis sujeitinhos que sempre se voluntariam para espionarem e tentarem controlar os próximos, obcecados por deterem alguma autoridade e sequiosos por afirmarem-se pisando nos direitos alheios.

[Depois se constatou que o buraco era bem mais acima: as atrocidades foram cometidas com o conhecimento e anuência de toda a cadeia de comando. A tortura passou a ser uma política de estado e o extermínio sistemática dos resistentes na década de 1970 foi uma decisão tomada pelos graúdos, não um descontrole de subalternos.]

Avançarem da autoridade para o autoritarismo é um passo praticamente automático no caso dos inspetores de quarteirão. Obtida a primeira, eles logo creem ter recebido licença para agir conforme lhes der na telha, extravasando os ressentimentos acumulados ao longo de suas existências medíocres.

Ou seja, cada inspetor de quarteirão é um delegado Sérgio Fleury em potencial. E o filme alemão A experiência (d. Oliver Hirschbiegel, 2001) o comprova, daí ser outro que não poderia faltar na seção filmes para ver no blogue, completo e dublado,

Mostra um experimento acadêmico que fracassa e termina miseravelmente. Choca-nos ao mostrar o quanto o autoritarismo é latente no homem comum, apenas esperando a oportunidade para aflorar; e, na primeira metade, tem o mérito de manter-se bastante fiel ao episódio real que o inspirou. 

Depois, contudo, carrega nas tintas para produzir um final espetaculoso, com as habituais peripécias eletrizantes mas inverossímeis. Ainda assim, é infinitamente melhor do que a tralha cinematográfica corriqueira.

Eis alguns parágrafos do tópico da Wikipedia sobre a experiência real, pois esta, indiscutivelmente, merece ser conhecida:

"O experimento de aprisionamento da Universidade de Stanford foi um marco no estudo psicológico das reações humanas ao cativeiro, em particular, nas circunstâncias reais da vida na prisão. Foi conduzido em 1971, por uma equipe de pesquisadores liderados por Philip Zimbardo, da Universidade de Stanford. Voluntários faziam os papéis de guardas e prisioneiros -e viviam em uma prisão 'simulada'. Contudo, o experimento rapidamente ficou fora de controle e foi abortado.

Os participantes foram recrutados através de um anúncio de jornal e receberiam US$ 15 por dia para participar de um 'experimento simulado de aprisionamento'. Dos 70 inscritos, Zimbardo e seu time selecionaram 24, que foram julgados como sendo mais estáveis psicologicamente e possuindo boa saúde.

A prisão, em si, localizava-se no subsolo do Departamento de Psicologia de Stanford, que fora convertido para esse propósito. Um estudante assistente de pesquisa era o 'diretor' e Zimbardo o 'superintendente'. Zimbardo criou uma série de condições específicas na esperança de que os participantes ficassem desorientados, despersonalizados e desindividualizados.

Aos guardas eram entregues bastões de madeira e uniformes de estilo militar de cor bege, que foram escolhidos pelos próprios 'guardas' em uma loja local. Eles também receberam óculos de sol espelhados para evitar o contato visual. Diferentemente dos prisioneiros, os guardas trabalhariam em turnos e poderiam voltar para suas casas nas horas livres, porém alguns preferiam voluntariar-se para fazer horas-extras sem pagamento.

Os prisioneiros deveriam vestir apenas roupões ao estilo do oriente-médio, sem roupa de baixo e chinelos de borracha, tais medidas fariam com que eles adotassem posturas corporais estranhas --segundo Zimbardo-- visando aumentar o desconforto e a desorientação.
O experimento real incluiu humilhações sexuais...

Eles receberam números ao invés de nomes. Estes números eram costurados aos seus uniformes e os prisioneiros tinham de usar meias-calças apertadas feitas de nylon em suas cabeças para simular que seus cabelos estivessem rapados, similarmente aos cortes utilizados na recruta militar. Além disso, eles eram obrigados a utilizar correntes amarradas em seus tornozelos como um 'lembrete permanente' de seu aprisionamento e subjugação.

No dia anterior ao aprisionamento, os guardas foram convocados a uma reunião de orientação, mas não receberam nenhuma instrução formal. Apenas a violência física não seria permitida. Foi-lhes dito que seria sua responsabilidade o funcionamento da prisão e que, para tanto, eles poderiam recorrer a qualquer meio que julgassem necessário.

Zimbardo fez o seguinte discurso aos guardas durante a reunião: 'Vocês podem gerar nos prisioneiros sentimentos de tédio, de medo até certo ponto, transmitir-lhes uma noção de arbitrariedade e de que suas vidas são totalmente controladas por nós, pelo sistema, por vocês e por mim, e não terão privacidade alguma... Nós vamos privá-los de sua individualidade de diversas maneiras. De um modo geral, isso fará com que eles se sintam impotentes. Isto é, nesta situação nós vamos ter todo o poder e eles nenhum'.
...e desorientação provocada...

Aos participantes que seriam os prisioneiros, apenas foi dito para que eles esperassem em suas casas até serem 'convocados' no dia que o experimento começaria. Sem qualquer outro aviso, eles foram 'acusados' de roubo armado e presos pelo verdadeiro departamento de polícia local de Palo Alto, que cooperou nesta parte do experimento.

Os prisioneiros passaram pelo processo de identificação regular da polícia, incluindo a tomada de impressões digitais e fotografias, e foram informados de seus direitos. Depois disso, foram levados até a 'prisão simulada' onde foram revistados, 'higienizados' e receberam suas novas identidades (números).

O experimento ficou rapidamente fora de controle. Os prisioneiros sofriam --e aceitavam-- tratamentos humilhantes e sádicos por parte dos guardas e, como resultado, começaram a apresentar severos distúrbios emocionais. Após um primeiro dia relativamente sem incidentes, no segundo dia, eclodiu uma rebelião. Guardas voluntariaram-se para fazer horas extras e trabalhar em conjunto para resolver o problema, atacando os prisioneiros com extintores de incêndio e sem a supervisão do grupo de pesquisa. Seguidamente, os guardas tentaram dividir os prisioneiros e gerar inimizade entre eles, criando um bloco de celas para 'bons' e um bloco de celas para 'ruins'.

Ao dividirem os prisioneiros desta forma, os guardas pretendiam que eles pensassem que havia 'informantes' entre eles. Estas medidas foram altamente eficazes e motins em grande escala cessaram. De acordo com os consultores de Zimbardo, a tática é similar à utilizada, com sucesso, nas prisões americanas reais.

A 'contagem' dos prisioneiros, que havia sido inicialmente instituída para os ajudar a se acostumarem com seus números de identificação, transformou-se em cenas de humilhação, que duravam horas.
...fielmente reproduzidas no filme...

Os guardas maltratavam os prisioneiros e impunham-lhes castigos físicos como, p. ex., exercícios que obrigavam a esforços pesados. Muito rapidamente, a prisão tornou-se um local insalubre e sem condições de higiene e com um ambiente hostil e sinistro. O direito de utilizar o banheiro tornou-se um privilégio que poderia ser --e frequentemente era-- negado.

Alguns prisioneiros foram obrigados a limpar os banheiros sem qualquer proteção nas mãos. Os colchonetes foram removidos para o bloco de celas dos 'bons' e os demais prisioneiros eram obrigados a dormir no concreto, sem roupa alguma. A comida era frequentemente negada, sendo usada como meio de punição. Alguns prisioneiros foram obrigados a despir-se e chegou a haver atos de humilhação sexual.

À medida que o experimento prosseguia os guardas iam dando mostras de um crescente sadismo, especialmente à noite, quando eles pensavam que as câmeras estavam desligadas. Os investigadores afirmaram que aproximadamente um terço dos guardas apresentou tendências sádicas 'genuínas'. Muitos dos guardas ficaram bastante desapontados quando a experiência foi terminada antes do previsto.

Um dos pontos que Zimbardo ressaltou como prova de que os participantes haviam internalizado seus papéis é que, ao ser-lhes oferecida a 'liberdade condicional' em troca do pagamento dos dias que faltavam para a experiência terminar, a maioria dos 'prisioneiros' aceitou o acordo. Eles receberiam apenas pelos dias em que haviam participado.
...conforme se pode constatar nestas fotos.

Porém, ao ser-lhes comunicado que a 'liberdade condicional' havia sido rejeitada e que se eles fossem embora não receberiam nada, os prisioneiros permaneceram no experimento.

Um prisioneiro chegou a desenvolver rash [erupção] cutâneo de origem psicossomática por todo o corpo, ao descobrir que não poderia deixar o experimento ou não receberia nenhum dinheiro. Zimbardo ignorou, alegando que ele apenas estava 'fingindo' estar doente para poder escapar. Choro incontrolável e pensamento desorganizado também foram sintomas comuns entre os prisioneiros. Dois deles sofreram tal trauma que tiveram de ser removidos e substituídos.

Um dos prisioneiros substitutos, com o número 416, ficou tão horrorizado com o tratamento que os guardas estavam dando que resolveu iniciar uma greve de fome. Ele foi trancado em um compartimento exíguo, que servia como 'solitária', durante três horas, enquanto os guardas o obrigaram a segurar as salsichas que tinha recusado comer.

Os demais prisioneiros consideravam-no um 'causador de problemas'. Para explorar esse sentimento, os guardas fizeram uma oferta: os prisioneiros poderiam abrir mão das suas mantas para que o substituto fosse libertado da solitária, ou ele seria mantido lá durante a noite toda. Os prisioneiros escolheram ficar com as suas mantas. 

O experimento, que havia sido planejado para durar duas semanas, durou apenas seis dias.

5 comentários:

Eduardo Rodrigues Vianna disse...

Interessante, vou ver na semana que vem.

axel_terceiro disse...

Celso, o que você acha do trabalho do Pasolini como diretor?

celsolungaretti disse...

Axel,

quando eu era crítico de cinema, tinha de parir respostas sofisticadas para todas as perguntas desse tipo.

Hoje, posso ser sincero: o Pasolini construiu uma obra perturbadora e desafiante, mas eu não me identificava com suas preocupações.

Parecia-me que ele queria acertar contas com sua formação religiosa, às vezes até incorrendo em excessos "pecaminosos" para agredir o catolicismo e seus tabus.

Eu deixei a religião para trás lá pelos 11 ou 12 anos, então não compartilhava essa sua obsessão metafísica. O que definia a minha geração era o "que a terra é do homem, não é de Deus nem do diabo", a mensagem final da obra-prima do Glauber Rocha.

TEOREMA é um grande filme, mas me parece ter gerado um impasse na obra do Pasolini: o que fazer depois disto? Assim como os roqueiros Jimi Hendrix, Janis Joplin, Jim Morrison, etc., parece-me que, a partir de um certo ponto de ruptura, sobra apenas a opção de repetir-se, ficando aquém dos marcos já atingidos, ou radicalizar cada vez mais; só que quem se aproxima demais do sol encontra a morte.

axel_terceiro disse...

Celso, recentemente pude assisti à chamada ''trilogia da vida'' e ''Salo''. Sobre a trilogia da vida, não me agradou. Mas, quanto a Salo, juro que foi uma das experiências mais impactantes que já passei ao ver um filme. Não que eu tenha necessariamente gostado, mas é que fiquei bastante chocado mesmo. Um amigo meu cinéfilo, que diz não gostar da segunda metade da carreira do diretor, me falou que a melhor fase da carreira do Pasolini são os primeiros filmes. Segundo ele, Accatone", "Mamma Roma', "Gaviões e Passarinhos", e o roteiro de "O Belo Antônio" são obras-primas (Ainda não os vi). Ano passado o Abel Ferrara fez uma cinebiografia sobre o Pasolini (Willem Dafoe o interpreta). É bacaninha.

celsolungaretti disse...

Não sou moralista nem considero o sexo explícito no cinema necessariamente pornográfico. Mas, não vi proveito artístico em levar às telas, com atores amadores, o DECAMERON, OS CONTOS DE CANTERBURY e AS MIL E UMA NOITES. Parecia coisa de colegiais, mais constrangedora do que excitante, ruim como arte e até como pornografia. É por isto que eu escrevi no comentário acima que o Pasolini parece não ter sabido mais o que fazer depois do TEOREMA.

Assim como o Godard parece não ter sabido mais o que fazer depois de ter interrompido o Festival de Cannes de 1968 porque a verdadeira arte estava sendo feita nas barricadas de Paris.

Quanto ao SALÒ, é um dos filmes mais indefensáveis da história do cinema. Doentio. Expõe-nos a quase duas horas de aviltamento do homem pelo homem para, no final, pregar a pureza. É Sade durante 110 minutos para, digamos, desconstruir Sade pelo excesso e ser o anti-Sade nos minutos finais.

Se a visão fascista de mundo, em última análise, conduzia àquilo em termos de sexo, você já pensou se ele colocasse na tela, igualmente explícita, a visão fascista de mundo acerca da tortura? Quase duas horas de porradas, pau-de-arara, choques elétricos e unhas arrancadas? Ninguém suportaria assistir.

Mas, como se tratava de sexo e havia um interminável desfilar de jovens corpos nus, o filme atraiu suficientes espectadores para se tornar um "sucesso de escândalo".

Muitos que o execraram, quando afinal se pôde assisti-lo no Brasil, preferiram ficar em cima do muro, por temerem exatamente ser tidos como moralistas. Pegava mal.

A mim não me incomodou que a coisa estivesse sendo mostrada de forma tão nua e crua, mas sim a ambiguidade intrínseca do filme, nas pegadas da ambiguidade do Sade. Em ambos se percebe rejeição àquelas tentações secretas que os farisaicos das altas rodas, mas também fascínio por elas. Tipo "é uma nojeira repulsiva, mas até que me excita um tantinho".

Só que o marquês, ao menos, era parte daquilo que rejeitava. Achei simplesmente esquisito o Pasolini sentir-se atraído pela obra do Sade. Pareceu-me ser algo relacionado ao seu acerto de contas com o catolicismo.

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