quinta-feira, 30 de julho de 2015

APOLLO NATALI: "ESTAÇÃO CENSURA".

Em pleno século 21, dentre 179 países pesquisados, apenas três deles (Finlândia, Holanda e Noruega), não enfrentam as dores da censura, informa a organização não-governamental Repórteres Sem Fronteira .

No dia-a-dia das canseiras dos mortais, bocas são emudecidas por variados matizes de tirania: a da política, da economia, a doméstica, aquela de indivíduo para indivíduo. Qual o limite para a liberdade de expressão? 

Vivemos nos limites da lei e da ordem, eis a resposta -- insuficiente -- do Estado democrático. Em meio a deslumbrados arroubos retóricos sobre como não consentir que nos calem a boca, encontramos o personagem considerado o campeão mundial da liberdade de expressão, um inglês. 

Garimpamos um primeiro diamante dele, precioso xarope a nos liberar a garganta. O que ele diz pode ser considerado hoje um elementar ovo de Colombo, mas é tido por renomados pensadores como o supra-sumo do ideal de liberdade: 
"Acima de todas as liberdades está a liberdade de saber, de proferir e discutir livremente de acordo  com a consciência".
Está em Areopagítica, do inglês John Milton, da Top Books, datada da metade do século 17 – quatro séculos antes de a Declaração de Windohek, em 1991, apontar a liberdade, a independência e o pluralismo da imprensa como princípios essenciais para a democracia e os direitos humanos. 

Pouco lembrada hoje em dia, tal obra seiscentista é, no entanto, considerada um dos mais importantes documentos da história da liberdade. O panfleto, conhecido como Discurso pela liberdade de imprensa ao Parlamento da Inglaterra, tencionava obter a anulação dos Ordenamentos de 1643, que impuseram a censura prévia na forma de obrigatoriedade de autorização e registro para publicação de qualquer material escrito.

O termo Areopagítica é emprestado do orador Isócrates,  355 a.C, que pedia a restauração do Conselho do Areópago na democracia ateniense. Entre suas bravatas naquele trevoso tempo em que se proibia até a Bíblia e o destino dos livros e seus autores eram a fogueira, John Milton, contemporâneo de Shakespeare (sobre quem, aliás, escreveu), visitava o gênio Galileu Galileu em sua prisão domiciliar, numa época em que a Inglaterra ”gemia sob a censura espanhola”.   

Atreveu-se a fazer um retrato grotesco dos censores e a demonstrar que a censura não passava de um monstruoso equívoco, sempre associado à tirania. Como se São Pedro tivesse dado aos censores as chaves da imprensa juntamente com as do Paraíso, zombava. Mais dia, menos dia, seria preso. Foi encarcerado em 1759.

O diplomata, crítico e poeta Felipe Fortuna, em sua nota explicativa sobre Areopagítica, indica que a obra é estruturada em quatro partes e seu principal objetivo é a defesa da total liberdade de imprensa, a fim de tornar possível o maior avanço do conhecimento da verdadeAs quatro partes:
A inquisição queimava livros na Idade Média...
  • demonstração histórica de que a censura é um produto da Inquisição católica e, como tal, contrária ao pensamento da Inglaterra protestante, o que tornava contraditória sua admissão pelo status quo inglês. O autor demonstra que a censura esteve sempre associada à tirania e, nos tempos modernos, ao reacionarismo católico do Concílio de Trento, na Contra-Reforma. 
  • sustentação de que o bem e o mal estão inextricavelmente ligados, não sendo possível coibir apenas um deles sem atingir profundamente o outro. Defesa do benefício da liberdade de imprensa, uma vez que o conhecimento e a verdade surgem do contato com o que existe de bom e de mau nos livros, cabendo ao leitor buscar o que neles mais lhe agradar. Mesmo autores ímpios, argumenta, tinham sido lidos com proveito por apóstolos e teólogos, ao longo do tempo. Cita a pérola anti-censura do apóstolo Paulo: Discerni tudo e ficai com o que é bom.
  • condenação da censura prévia de qualquer livro, em nome da razão e da liberdade, fundadoras da virtude. Ressalta o aspecto da inutilidade da censura, uma vez que os maus livros são verdadeiramente combatidos quando suas ideias ficam expostas e não quando permanecem ignoradas. A censura, diz, jamais conseguirá ser completa ou eficiente.
  • demonstra que é impossível tornar as pessoas virtuosas pela coerção externa, já que o combate à corrupção moral se faz com o poder da escolha racional. A censura impede que se exerça a faculdade do juízo e da escolha, desestimula todo tipo de estudo, humilha a nação, cria um ambiente de perene estupidez.
...a Juventude Hitlerista no século passado...
Advoga que antes “do mais anticristão Concílio”, o de Trento, da Contra-Reforma, e da Inquisição “a mais tirânica de quantas houve”, os livros foram sempre admitidos livremente no mundo como qualquer outro nascimento. Nunca se ouvira dizer que um livro, em pior situação do que uma alma pecadora, devesse ficar postado diante de um júri antes de vir ao mundo. Há limites do poder estatal em questões de conduta privada, reclamava. Confinar os livros, encarcerá-los e submetê-los à mais rigorosa justiça é como tê-los  como malfeitores.

Aplica a todos os meios de expressão esta sua universalmente conhecida defesa do livro
"...porque os livros não são coisas absolutamente mortas; contêm uma espécie de vida em potência, tão prolífica quanto a alma que os engendrou. E mais: eles preservam, como num frasco, o mais puro e eficaz extrato do intelecto que os produziu.
Estou convencido de que eles são tão vivos e tão vigorosamente fecundos quanto aqueles dentes de dragão da fábula citada por Camões, os dentes de Cádmio, que se reproduziam ao mesmo tempo em que uns aos outros se davam à morte dura.
...e alguns grupos radicais ainda hoje.
 Muitos homens não passam de um fardo sobre a Terra mas um bom livro é o precioso sangue de um espírito superior, conservado e guardado com vistas a uma vida para além da vida".
A censura é equiparada a um massacre: 
"Deveríamos refletir sobre o tipo de perseguição que desencadeamos contra as obras vivas dos homens públicos, para não causarmos a perda de uma vida humana, amadurecida, preservada e acumulada em livros; vemos logo que se pode cometer assim uma espécie de homicídio, às vezes até mesmo um martírio e se isso se estende a toda impressão, corresponde a um verdadeiro massacre, pois que a execução, no caso, não se esgota no aniquilamento de uma vida rudimentar, mas alcança aquela etérea quintessência, que é o sopro de vida da própria razão. E isso atenta contra a imortalidade e não simplesmente contra a vida".
Finalmente, John Milton apontou o mais temível desastre provocado pela censura:
"O passar do tempo raramente recupera a perda de uma verdade rejeitada, cuja falta faz nações inteiras esperarem pelo pior".  

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