Em pleno século 21, dentre 179 países pesquisados, apenas três deles (Finlândia, Holanda e Noruega), não enfrentam as dores da censura, informa a organização não-governamental Repórteres Sem Fronteira .
No dia-a-dia das canseiras dos mortais, bocas são emudecidas por variados matizes de tirania: a da política, da economia, a doméstica, aquela de indivíduo para indivíduo. Qual o limite para a liberdade de expressão?
Vivemos nos limites da lei e da ordem, eis a resposta -- insuficiente -- do Estado democrático. Em meio a deslumbrados arroubos retóricos sobre como não consentir que nos calem a boca, encontramos o personagem considerado o campeão mundial da liberdade de expressão, um inglês.
Garimpamos um primeiro diamante dele, precioso xarope a nos liberar a garganta. O que ele diz pode ser considerado hoje um elementar ovo de Colombo, mas é tido por renomados pensadores como o supra-sumo do ideal de liberdade:
"Acima de todas as liberdades está a liberdade de saber, de proferir e discutir livremente de acordo com a consciência".
Está em Areopagítica, do inglês John Milton, da Top Books, datada da metade do século 17 – quatro séculos antes de a Declaração de Windohek, em 1991, apontar a liberdade, a independência e o pluralismo da imprensa como princípios essenciais para a democracia e os direitos humanos.
Pouco lembrada hoje em dia, tal obra seiscentista é, no entanto, considerada um dos mais importantes documentos da história da liberdade. O panfleto, conhecido como Discurso pela liberdade de imprensa ao Parlamento da Inglaterra, tencionava obter a anulação dos Ordenamentos de 1643, que impuseram a censura prévia na forma de obrigatoriedade de autorização e registro para publicação de qualquer material escrito.
O termo Areopagítica é emprestado do orador Isócrates, 355 a .C, que pedia a restauração do Conselho do Areópago na democracia ateniense. Entre suas bravatas naquele trevoso tempo em que se proibia até a Bíblia e o destino dos livros e seus autores eram a fogueira, John Milton, contemporâneo de Shakespeare (sobre quem, aliás, escreveu), visitava o gênio Galileu Galileu em sua prisão domiciliar, numa época em que a Inglaterra ”gemia sob a censura espanhola”.
Atreveu-se a fazer um retrato grotesco dos censores e a demonstrar que a censura não passava de um monstruoso equívoco, sempre associado à tirania. “Como se São Pedro tivesse dado aos censores as chaves da imprensa juntamente com as do Paraíso”, zombava. Mais dia, menos dia, seria preso. Foi encarcerado em 1759.
O diplomata, crítico e poeta Felipe Fortuna, em sua nota explicativa sobre Areopagítica, indica que a obra é estruturada em quatro partes e seu principal objetivo é a defesa da total liberdade de imprensa, a fim de tornar possível o maior avanço do conhecimento da verdade. As quatro partes:
A inquisição queimava livros na Idade Média... |
- demonstração histórica de que a censura é um produto da Inquisição católica e, como tal, contrária ao pensamento da Inglaterra protestante, o que tornava contraditória sua admissão pelo status quo inglês. O autor demonstra que a censura esteve sempre associada à tirania e, nos tempos modernos, ao reacionarismo católico do Concílio de Trento, na Contra-Reforma.
- sustentação de que o bem e o mal estão inextricavelmente ligados, não sendo possível coibir apenas um deles sem atingir profundamente o outro. Defesa do benefício da liberdade de imprensa, uma vez que o conhecimento e a verdade surgem do contato com o que existe de bom e de mau nos livros, cabendo ao leitor buscar o que neles mais lhe agradar. Mesmo autores ímpios, argumenta, tinham sido lidos com proveito por apóstolos e teólogos, ao longo do tempo. Cita a pérola anti-censura do apóstolo Paulo: Discerni tudo e ficai com o que é bom.
- condenação da censura prévia de qualquer livro, em nome da razão e da liberdade, fundadoras da virtude. Ressalta o aspecto da inutilidade da censura, uma vez que os maus livros são verdadeiramente combatidos quando suas ideias ficam expostas e não quando permanecem ignoradas. A censura, diz, jamais conseguirá ser completa ou eficiente.
- demonstra que é impossível tornar as pessoas virtuosas pela coerção externa, já que o combate à corrupção moral se faz com o poder da escolha racional. A censura impede que se exerça a faculdade do juízo e da escolha, desestimula todo tipo de estudo, humilha a nação, cria um ambiente de perene estupidez.
...a Juventude Hitlerista no século passado... |
Aplica a todos os meios de expressão esta sua universalmente conhecida defesa do livro:
"...porque os livros não são coisas absolutamente mortas; contêm uma espécie de vida em potência, tão prolífica quanto a alma que os engendrou. E mais: eles preservam, como num frasco, o mais puro e eficaz extrato do intelecto que os produziu.
Estou convencido de que eles são tão vivos e tão vigorosamente fecundos quanto aqueles dentes de dragão da fábula citada por Camões, os dentes de Cádmio, que se reproduziam ao mesmo tempo em que uns aos outros se davam à morte dura.
...e alguns grupos radicais ainda hoje. |
Muitos homens não passam de um fardo sobre a Terra mas um bom livro é o precioso sangue de um espírito superior, conservado e guardado com vistas a uma vida para além da vida".
A censura é equiparada a um massacre:
"Deveríamos refletir sobre o tipo de perseguição que desencadeamos contra as obras vivas dos homens públicos, para não causarmos a perda de uma vida humana, amadurecida, preservada e acumulada em livros; vemos logo que se pode cometer assim uma espécie de homicídio, às vezes até mesmo um martírio e se isso se estende a toda impressão, corresponde a um verdadeiro massacre, pois que a execução, no caso, não se esgota no aniquilamento de uma vida rudimentar, mas alcança aquela etérea quintessência, que é o sopro de vida da própria razão. E isso atenta contra a imortalidade e não simplesmente contra a vida".
Finalmente, John Milton apontou o mais temível desastre provocado pela censura:
"O passar do tempo raramente recupera a perda de uma verdade rejeitada, cuja falta faz nações inteiras esperarem pelo pior".
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