O que há, ainda, para se dizer sobre Lamarca, o personagem brasileiro mais próximo de Che Guevara, por história de vida e pela forma como encontrou a morte?
Foi, acima de tudo, um homem que não se conformou com as injustiças do seu tempo e considerou ter o dever pessoal de lutar contra elas, arriscando tudo e pagando um preço altíssimo pela opção que fez.
Teve enormes acertos e também cometeu graves erros, praticamente inevitáveis numa luta travada com tamanha desigualdade de forças e em circunstâncias tão dramáticas.
Mas, nunca impôs a ninguém sacrifícios que ele mesmo não fizesse. Chegava a ser comovente seu zelo com os companheiros --via-se como responsável pelo destino de cada um dos quadros da Organização e, quando ocorria uma baixa, deixava transparecer pesar comparável ao de quem acaba de perder um ente querido.
Dos seus melhores momentos, dois me sensibilizaram particularmente.
Qualquer anomalia, mesmo um atraso no pagamento de aluguel, poderia atrair atenções indesejáveis.
Mas, o chamado grupo tático fora o setor mais duramente golpeado pelas investidas repressivas.
Então, quando se planejou a expropriação simultânea de dois bancos vizinhos, na zona Leste paulistana, o pessoal experiente que sobrara não bastava para levá-la a cabo.
Eu e os sete companheiros secundaristas que acabáramos de ingressar na Organização fomos todos escalados --na enésima hora, entretanto, chegou a decisão do Comando, designando-me para criar e coordenar um setor de Inteligência, então fiquei de fora.
Lamarca, procuradíssimo pelos órgãos repressivos, fez questão de estar lá para proteger os recrutas no seu batismo de fogo. Os outros quatro comandantes tudo fizeram para demovê-lo, em nome da sua importância para a revolução. Em vão. A lealdade para com a tropa nele falava mais alto.
Depois de muita discussão, chegou-se a uma solução de compromisso: ele não entraria nas agências, mas ficaria observando à distância, pronto para intervir caso houvesse necessidade.
Houve: um guarda de trânsito, alertado por transeunte, postou-se na porta de um dos bancos, arma na mão, pronto para atingir o primeiro que saísse.
Lamarca, que tomava café num bar a 40 metros de distância, só teve tempo de apanhar seu .38 cano longo de competição, mirar e desferir um tiro dificílimo --tão prodigioso que, no mesmo dia, a ditadura já percebeu quem fora o autor. Só um atirador de elite seria capaz de acertar.
Como resultado, a repressão teve pretexto para fazer de Lamarca o inimigo público nº 1 -- e, claro, o fez. A imagem dele foi difundida à exaustão, obrigando-o a redobrar cuidados e até a submeter-se a uma cirurgia plástica.
Também teve de brigar muito com os demais dirigentes e militantes, para salvar a vida do embaixador suíço Giovanni Butcher, quando a ditadura se recusou a libertar alguns dos prisioneiros pedidos em troca dele e ainda anunciou que o Eduardo Leite (Bacuri) morrera ao tentar fugir.
Dá para qualquer um imaginar a indignação resultante --afinal, as dantescas circunstâncias reais da morte do Bacuri (vide aqui) ficaram conhecidas na Organização.
Mesmo assim Lamarca não arredou pé, usando até o limite sua autoridade para evitar que a VPR desse aos inimigos o monumental trunfo que as Brigadas Vermelhas mais tarde dariam, ao executarem Aldo Moro. Sua posição prevaleceu, mas o episódio foi tão traumático que acabou tendo grande peso na sua decisão de deixar a VPR.
E, no MR-8, novamente divergiu da maioria dos companheiros --quanto à sua salvação.
Pressionaram-no muito para que saísse do Brasil, preservando-se para etapas posteriores da luta, pois em 1971 nada mais havia a se fazer. Aquilo virara um matadouro.
Conhecendo-o como conheci, tenho a certeza absoluta de que não perseverou por acreditar numa reviravolta milagrosa. Em termos militares, suas análises eram as mais realistas e acuradas. Nunca iludia a si próprio.
O motivo certamente foi a incapacidade de conciliar a ideia de fuga com todos os horrores já ocorridos, a morte e os terríveis sofrimentos infligidos a tantos seres humanos idealistas e valorosos. Fez questão de compartilhar até o fim o destino dos companheiros, honrando a promessa, tantas vezes repetida, de vencer ou morrer.
Doeu --e como!-- vermos os militares exibindo seu cadáver como troféu, da forma mais selvagem e repulsiva.
Mas, ele havia conquistado plenamente o direito de desconsiderar fatores políticos e decidir apenas como homem se preferia viver ou morrer.
Merece, como poucos, nosso respeito e admiração.
2 comentários:
Gostaria que o Sr. se ese ao trabalho e contar a história da captura e do assassinato brutal e covarde de Alberto Mendes Jr, que teve seu crânio partido a coronhadas de fuzil por Lamarca e seus companheiros de revolução.
Por que eu o haveria de fazer? No momento em que isto acontecia, eu estava sendo bestialmente torturado em unidades militares, quase enfartando aos 19 anos de idade e tendo um tímpano estourado para sempre (três cirurgias não o reabilitaram). Então, evidentemente, não presenciei nada do que aconteceu na Operação Registro.
Quem pode reconstituir acontecimentos de 46 anos atrás são os historiadores e os escritores que produzem livros históricos. Por coincidência, está saindo neste mês um relato bem imparcial de tudo que ocorreu na caçada ao Lamarca:
https://naufrago-da-utopia.blogspot.com.br/2016/08/apos-46-anos-novo-livro-esclarece.html
Se o assunto lhe interessa tanto, sugiro que compre o livro e o leia. É obra séria, não essas besteiras tendenciosas e demagógicas que saem nos sites da ultradireita.
Já passou tempo demais para encararmos tudo aquilo com viés propagandístico. Foi uma tragédia histórica. Eu lamento o que houve com o tenente Alberto Mendes Jr., assim como lamento a morte do meu colega do primário e grande amigo Eremias Delizoicov, retalhado por 35 balaços a ponto de ficar irreconhecível. E de uns 20 outros idealistas que conheci e entregaram a vida na luta contra o arbítrio.
Mas, se passarmos o resto da vida guardando rancor e querendo vingança, não estaremos vivendo nem sendo úteis aos brasileiros de hoje.
O importante é que esses episódios terríveis nunca mais se repitam.
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