Eu sempre aplaudirei as iniciativas para tornar-se a arte acessível a quem a queira fluir, tendo ou não grana para pagar por ela. É o espírito de 1968. Continuo fiel a ele.
Na década de 1970, participei entusiasticamente de coletâneas alternativas impressas em gráficas menores como a Casa do Pequeno Trabalhador e que depois eram vendidas a preço de banana, pela quantia de que o interessado dispusesse. Ninguém jamais ficou sem livro, em último caso os presenteávamos. Nunca o arrecadado cobriu totalmente os custos, mas não ligávamos de bancar a diferença fazendo vaquinhas entre nós.
Hoje, como blogueiro, não dou a mínima para o direito autoral de meus textos nem admito forma nenhuma de comercialização nos meus blogues. Quem os acessa está livre de malhos comerciais e pode copiar o que quiser para colar onde quiser, desde que (única exigência) cite a fonte.
Admiro os jovens blogueiros que se empenham em fazer da internet, tanto quanto possível, um território livre da ganância capitalista. Vejo isto como mais uma confirmação de que as boas sementes da minha geração frutificaram.
Caso dos chamados downloaders, que se dão ao trabalho de garimpar arquivos de filmes, adaptar ou criar legendas e os disponibilizarem. A maioria, sem ganhar um centavo por uma faina que geralmente é das mais trabalhosas (levam até duas semanas para traduzir e adequar uma legenda). E a quase totalidade, sem sequer assinar o próprio nome, por receio dos cães de guarda dos direitos autorais.
Um deles, meu amigo virtual há bom tempo, é o Tatuador. Ele acaba de disponibilizar um filme raríssimo, atendendo gentilmente a uma sugestão minha: Escalofrío (d. Carlos Puerto, filmado em 1977 e lançado no ano seguinte). Quem quiser baixar, encontra-o aqui.
Também chamado de Satan's blood, pode ser definido como um Bebê de Rosemary com algumas sequências eróticas pesadas (embora não explícitas). E é um thriller envolvente, com boas surpresas e reviravoltas, prendendo a atenção o tempo todo (apenas o finalzinho é previsível).
Para melhor compreendê-lo, temos de levar em conta o subtexto (aquilo que não é dito, mas está por trás de tudo): a Espanha acabava de sair de 37 anos de uma brutal ditadura fascista; e o franquismo tivera como um dos principais sustentáculos a Igreja Católica, herdeira das terríveis caças às bruxas promovidas pela Santa Inquisição e responsável pelo moralismo rançoso imposto ao país durante as intermináveis décadas de tirania.
Então, ao mostrar o completo triunfo de uma trama de satanistas e carregar na dosagem de sexo, Carlos Puerto dava duas sonoras bofetadas nas bochechas de religiosos que se acumpliciaram com a barbárie. Trata-se, em suma, de um filme-desabafo, como muitos que foram lançados em países que se redemocratizaram.
Provavelmente se deva a isto a dificuldade que existia até agora para o encontrarmos disponibilizado na web. Embora tenha qualidade artística muito superior à do trivial do gênero de terror e haja sido adotado por muitos como cult, permanecia quase clandestino na web.
Então, o Tatuador merece todo reconhecimento por haver contribuído, em muito, para que Escalofrío possa ser apreciado por contingentes mais amplos de internautas.
O melhor papel que os downloaders podem desempenhar é exatamente este, de implodir tanto as barreiras da mercantilização da arte quanto as da censura, seja ela explícita ou implícita.
Um comentário:
Excelente análise crítica ! Agradeço pela oportunidade de conhecer e de divulgar o filme. Não fosse pela indicação do amigo esta raridade continuaria desconhecida pelo público.
Postar um comentário