domingo, 20 de outubro de 2013

A 'AUTOCRÍTICA NA PRÁTICA' DE ANTÔNIO DAS MORTES

O maior cineasta brasileiros de todos os tempos atendia pelo nome de Glauber de Andrade Rocha (1939-1981), responsável pelos três únicos filmes brazukas dignos de constar numa relação das melhores obras da cinematografia mundial: Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), Terra em Transe (1967) e O Dragão da maldade contra o santo guerreiro (1969).

Oportunamente, postarei os dois primeiros. Mas, como o Deus e o Diabo não está disponibilizado no Youtube, vou inverter a ordem dos fatores, publicando inicialmente sua sequência.

E que sequência! O Dragão da maldade está longe de ser uma mera continuação oportunística de uma fita que deu certo, para faturar mais algum. Tem vida própria e é bem diferente do seu antecessor, até porque mudou muito o Brasil ao longo dos cinco anos que os separam.

Deus e o Diabo  foi lançado pouco depois do golpe de 1964, mas as filmagens ocorreram antes, daí ser, tipicamente, uma obra do cinema novo, o herdeiro brasileiro do neo-realismo italiano. Mas, Glauber já tendia para as sínteses ousadas, então incorporou também influências de Eisenstein, John Ford e Lima Barreto, além de aproveitar magnificamente a rica cultura popular nordestina.

Dá uma visão do beatismo e do cangaço que é bem a da esquerda da época, exposta em livros como Cangaceiros e fanáticos, do Rui Facó, lançado exatamente em 1963. 

Mostra-os como o primeiro (e embrionário) estágio da revolta contra a opressão e a exploração. O vaqueiro Manuel  passa por um e outro, como discípulo do  Santo Sebastião  (ersatz de Antônio Conselheiro) e do cangaceiro Corisco, até chegar ao entendimento de que a salvação do sofrido povo nordestino não virá de Deus nem do diabo, mas sim do homem que se torna senhor do seu destino --presumivelmente por meio da luta de libertação.

Antônio das Mortes (ersatz do major José Rufino) é um jagunço singular: elimina beatos e cangaceiros a soldo dos poderosos, mas acredita estar contribuindo para que o povo nordestino, "sem a cegueira de Deus e do diabo", trave a grande guerra que um dia terá de travar. É por isto que ele destrói o Monte Santo (ou seja, Canudos) e também mata Corisco.

O Dragão da maldade  mostra sua  autocrítica na prática. Antônio (Maurício Do Valle) já pendurou o bacamarte e lembra com saudades dos tempos da valentia. Quando um delegado (Hugo Carvana) vem lhe informar que no Jardim das Piranhas há um tal  Coirana  se apresentando como cangaceiro, ele fica surpreso, pois acreditava ter matado até o último.

Vai lá ver se é verdade e os acontecimentos o levam a mudar de lado: após matar Coirana, acaba substituindo-o como protetor de um grupo de fugitivos da miséria, incluindo uma santa dos pobres e um negro inspirado por Zumbi dos Palmares.

Finalmente, Antônio e um professor (Othon Bastos) que é ersatz do médico Che Guevara travam um duelo épico com o já decadente dragão da maldade (o coronel cego interpretado por Joffre Soares) e o bando de jagunços a seu serviço.

Ou seja, o filme aponta para a luta armada com que a esquerda sonhava em 1968, ano das filmagens. E tem todo um jeitão tropicalista, um verdadeiro delírio de cores, músicas e danças, impactante ao extremo. 

Quatro décadas depois, ainda é muito mais moderno do que toda essa tralha atual com estética televisiva, copiada da Rede Globo.  

3 comentários:

Marcílio disse...

Caro CL,

A propósito, o que você tem contra "O pagador de promessas"?

celsolungaretti disse...

O Pagador não passa de um primo pobre do néo-realismo italiano. Impactou mais lá fora, por corresponder à visão que os gringos tinham de nós, do que aqui dentro.

Já o Glauber não era continuador de corrente nenhuma, era um gênio que fundia várias delas numa síntese própria. Seus filmes beberam igualmente nas águas do néo-realismo, mas também de Eisenstein, de John Ford, de Jean-Luc Godard, Gillo Pontecorvo e muitos outros, além do imaginário nordestino, a literatura de cordel, a ópera, etc.

Enfim, ele foi nosso primeiro cineasta AUTOR, no sentido que os franceses davam ao termo. Anselmo Duarte pertencia à categoria dos artesãos.

Abs.

Anônimo disse...

O Pagador de Promessas, é uma obra de Dias Gomes, com um diálogo crítico e atemporal. Anselmo Duarte, dirigiu o filme a partir da obra de Dias Gomes.

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