Uma rara análise desapaixonada do impasse sírio é dada por Marco Vicenzino, analista formado por Oxford que dirige uma consultoria de risco político global nos EUA. A ótica dele, no artigo Risco de guerra regional: a Síria não é a Líbia (veja aqui) é, exclusivamente, tornar compreensível, para investidores e atores políticos, o cenário atual e desdobramentos possíveis.
Seu alerta: "um impasse sangrento e prolongado na Síria pode se arrastar por tempo indeterminado" e o país tende a "se converter no campo de batalha central de uma mais ampla guerra regional por procuração, entre os Estados de maioria sunita e uma coalizão de forças xiitas lideradas pelo Irã".
Trata-se do aspecto mais negligenciado por uma esquerda simplista que reduz todas as crises a uma disputa entre o Mal (o imperialismo das grandes nações ocidentais) e o Bem (quem quer que com ele, circunstancialmente, tenha choques de interesses, pouco importando se se trata de um estado teocrático que horrorizaria Marx ou da mais bestial tirania familiar).
Erram rotundamente os que só enxergam a mão sinistra dos imperialistas desestabilizando a Síria, sem perceberem que as disputas regionais e religiosas têm relevância imensamente maior neste episódio.
A análise equivocada leva a uma opção desastrosa, a de implicitamente respaldarem o açougueiro Bashar al-Assad, de quem só se pode esperar mais do mesmo: tentativas de estancar a revolta com banhos de sangue.
O que resultará?
Um episódio menor foi estopim de uma guerra terrível em 1914 |
"A insurgência crescente vai continuar a atrair desertores do exército e cidadãos comuns, com violência também crescente.
Voluntários e simpatizantes experientes e endurecidos na batalha, vindos de toda a região e de fora dela, vão, cada vez mais, unir-se às fileiras da oposição para proteger os seus irmãos étnicos ou religiosos. Assim como o Iraque atraiu combatentes estrangeiros, a Síria também o fará -mas em escala muito maior e mais violenta.
"A Síria corre o risco de converter-se em uma colcha de retalhos de encraves sectários".
E, claro, muitas outras nações também sofrerão as consequências --seja envolvendo-se no conflito por determinação própria, seja por serem a ele arrastadas, seja por terem de lidar com levas de refugiados--, afora os previsíveis impactos sobre o comércio e a economia.
A região já é um barril de pólvora, por conta da situação insustentável nos territórios que Israel tomou pela força e pela força mantém, das pressões contra o programa nuclear iraniano, de rivalidades e intolerâncias milenares.
A guerra civil na Síria poderá vir a ser o estopim que conflagrará todo o Oriente Médio --algo como o assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando em 1914.
Então, são de uma insensibilidade monstruosa os que vituperam os esforços da ONU e da Liga Árabe para, correndo contra o tempo, ainda evitarem o pior.
Salta aos olhos que a já diminuta chance de se deter a marcha para o pesadelo passa por um cessar-fogo sob supervisão internacional e pelo afastamento de al-Assad.
Os aloprados da geopolítica preferem brincar com fogo, alheios ao perigo de que o incêndio venha a ser global, como tudo tende a ser global nos dias de hoje.
4 comentários:
Caro Celso, mas... e o Irã?!
Não se trata de estar contra o" imperialismo americano" ou coisa que o valha. Mas de levar em conta que é impossível, hoje, pensar a Síria sem pensar, ao mesmo tempo, o Irã. Tenho lido, bastante, Robert Fisk e não consigo ver como positiva a queda de Assad através de uma intervenção externa. Parece-me venda casada: intervenção na Síria para facilitar o mais que anunciado ataque de Israel ao Irã.
E que ajuda poderá a Síria dar ao Irã, se o al-Assad estará lutando com todas as forças para tentar manter-se no poder?
Ademais, não podemos, em nome de hipóteses, compactuar com o extermínio concreto que está sendo perpetrado pelo açougueiro, com enorme risco de a coisa evoluir para um conflito global no Oriente Médio.
Por último: nossa prioridade é defendermos revoluções, não estados teocráticos que circunstancialmente se opõem a Israel.
Por mais que Israel me repugne, jamais moverei uma palha para defendir um regime de aiatolás que impõem o apedrejamento de adúlteras.
Até porque bombas atômicas nas mãos de fanáticos religiosos são mesmo um enorme risco para a humanidade. Minha objeção é que Israel, por todas as piratarias e massacres que tem protagonizado, representa idêntico perigo.
Agora, se houvesse hipótese de serem simultaneamente eliminadas as instalações nucleares (e petardos já fabricados) do Irã e do Israel, eu consideraria excelente.
Enfim, de Israel e do Irã eu quero é distância. O marxismo que eu aprendi há 45 nos me torna impossível apoiar ou defender qualquer um deles.
O povo palestino, sim, eu defendo com prazer.
O que me incomoda é como que as coisas passaram a ser medidas pelas razões culturais.
Ou sou cego,ou um marxista em formação cego.E como tal,só consigo olhar para esses embates pelo viés de refutar o sistema,e considerá-lo o responsável pela maximização das batalhas étnico-religiosas,a pretexto de civilizar o médio oriente.
O imperialismo é sim,muito mais perigoso e nefasto que o Irã.Não que ache o regime/estrutura social iraniano,ou similares,maravilhosos.
Mas as pretensões do capitalismo e seus tentáculos são muito mais nefastas que o "imperialismo" iraniano,ou imperialismo do islamismo,sic.
Ou serão muito melhor as guerras de conquista,as guerras que levam a civilização,a modernidade às cavernas?Ou será que eu também pertença à esquerda má que seja contra o extermínio de uma nação,de um Povo,de uma cultura,tudo em nome da civilização?Não esqueçamos que a civilização ocidental,a mesma da propaganda imperialista,está em franca decadência,e que,nas mãos dos liberais,não trará nada de benéfico a nenhuma cultura,modo de vida,que não o do 1%.
Repito,não sou a favor de teocracias ou de monarquias sanguinárias,e por isso,a observar os meandros da política internacional,só me resta ser contra qualquer interferência da OTAN/EUA na Síria ou no Irã.
Grandes mudanças só acontecem de dentro pra fora,e nunca o contrário.
Carlos Rico,
sugiro que você leia Marx com atenção. Ele sempre defendeu o progresso, o nosso compromisso de conduzir a humanidade para estágios superiores de civilização.
Neste sentido, considerava as revoluções burguesas NECESSÁRIAS para extirpar o feudalismo, mas não o PONTO DE CHEGADA: deveríamos IR ALÉM DELAS, até o socialismo e, no final, o comunismo.
O certo é que ele nunca, jamais, em tempo algum, aceitou a volta ao medievalismo (estados teocráticos como o Irã) e muito menos à barbárie (tiranias familiares como a de Bashar al-Assad).
Desde que flexibilizamos nossos princípios, fomos de derrota em derrota, até chegarmos à quase irrelevância atual.
Pactos como o que Stalin firmou com os nazistas podem parecer vantajosos em curto prazo, mas o dano moral é CATASTRÓFICO.
Assim como é CATASTRÓFICO a esquerda brasileira apoiar ABOMINAÇões como o açougueiro de Damasco. Nossa imagem fica em frangalhos, facilitando o trabalho dos que tudo fazem para nos desqualificar.
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