segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

INTOLERÂNCIA

Tenho convicções formadas há tanto tempo que perdi de vista o caminho percorrido para chegar até elas.

Mas hoje, após escrever sobre a estapafúrdia decapitação, em pleno século 21, de uma pobre coitada acusada de bruxaria na Arábia Saudita, ocorreu-me refletir sobre por que me causa tanta irritação a intolerância religiosa. E acabei recordando algo que estava num canto empoeirado do baú da memória.

Tenho um primo com grave defeito de nascença, que foi obrigado a passar por várias cirurgias nos primeiros anos de vida.

E, por falta de melhores condições financeiras, a família recorreu à Santa Casa de Misericórdia, na capital paulista.

Uma freira nada misericordiosa lhe perguntou a religião. E, quando meu primo respondeu que era espírita (kardecista), correu a alvoroçar as demais.

Como consequência, ele passou a receber tratamento ríspido e a ser ridicularizado. Chamavam-no de  endemoniado.

Seu relato me chocou. E, quando comecei a cursar o primário, não titubeei diante da indagação da professora, que perguntou à classe se havia alguém preferindo ficar no pátio do que assistir ao catecismo. Eu e mais dois escolhemos o pátio. Havia outros que não eram católicos, mas fraquejaram.

A servente que tomava conta de nós enquanto fazia outras coisas, provavelmente era da mesma estirpe da freira inquisidora: impunha, aos berros, que nem sequer conversássemos, permanecendo apenas encostados na parede sem fazer nada.

Eu me consolava com o pensamento de que bem pior fora tratado meu primo, numa idade inferior à minha (sete anos). E, por solidariedade ou teimosia, perseverei: passei 1958 inteiro descendo ao pátio uma vez por semana para não fazer nada e ser intimidado pela gritaria da servente.

Norman Mailer escreveu, em Os exércitos da noite, sobre esses momentos em que fazemos travessias positivas ou negativas.

Hoje percebo que, ao não arredar pé da opção assumida (vale registrar que os dois colegas também se mantiveram firmes), moldei um padrão para o resto da vida: jamais abdicaria de agir conforme minha consciência ordenava em função de conveniências ou de pressões morais.

2 comentários:

ismar disse...

Celso,

A corrupta família real Saudita é "mantida" no poder graças às peripécias políticas dos norte-americanos, que tem sob seu domínio as maiores reservas mundiais de petróleo, fechando os olhos para os inúmeros abusos cometidos contra quem se opôe ao radicalismo religioso.

Um amigo brasileiro que foi trabalhar na Arábaia Saudita, presenciou algumas vezes estas horríveis execuções públicas: eles nem se dão ao trabalho de tentar esconder tamanha barbaridade aos olhos dos estrangeiros que visitam o país.

Primavera Árabe por lá, passa longe. OS EUA jamais irão aturar qualquer revolta contra aquele regime.

celsolungaretti disse...

Não é bem assim que as potências agem, Ismar.

Se houver qualquer revolta por lá, os EUA, primeiramente, ajudarão a família real.

Mas, se perceberem que ela cairá de qualquer jeito, passarão a apoiar os futuros governantes, para continuarem influentes no novo governo.

Foi mais ou menos o que algumas nações européias fizeram com o Gaddafi.

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