O filme valoriza a vítima ocasional, "inocente"... |
(artigo divulgado
em 15/01/2007)
em 15/01/2007)
Quando Chico Buarque lançou a canção “Angélica”, não eram muitos os que sabiam ser Zuzu Angel “essa mulher/ que canta sempre esse estribilho/ só queria embalar meu filho/ que mora na escuridão do mar”.
A estréia do filme Zuzu Angel fez com que, três décadas depois, a saga da estilista que confrontou o regime militar se tornasse muito mais conhecida do que no momento dos acontecimentos e nos anos subseqüentes.
É uma história em quatro tempos:
- em 1971, no pior momento da ditadura, Stuart Angel, militante do MR-8, já muito debilitado pelas torturas, foi amarrado à traseira de um jipe da Aeronáutica e arrastado com a boca colada ao cano de descarga do veículo, o que ocasionou sua morte por asfixia e intoxicação por monóxido de carbono. O corpo foi atirado no mar;
- sua mãe, Zuzu Angel, denunciou incansavelmente a execução e a ocultação do cadáver de Stuart, até ser vítima de um acidente automobilístico extremamente suspeito, em 1976;
- Chico Buarque, amigo a quem ela escrevera uma carta levantando a possibilidade de ser também assassinada pelos militares, homenageou-a com a alusiva “Angélica”, lançada em 1981, quando o Brasil começava a desmontar a engrenagem repressiva dos anos de chumbo;
- agora, em 2006, em meio aos escândalos do Governo Lula, chegou às telas o tributo cinematográfico a Zuzu Angel.
...e apresenta como imaturo quem confrontou conscientemente o arbítrio. |
O formato do filme de Sérgio Rezende é convencional, bem ao gosto dos espectadores formados pelas novelas e minisséries de TV. Mas, o tema lhe garante deferência da crítica e aplauso dos bem pensantes. Afinal, o importante é mostrar às novas gerações quão horrível era viver debaixo das botas...
Há quem veja nesse tipo de cinema uma função catártica: ter existido uma Zuzu Angel nos lava a alma e tranqüiliza a consciência, desobrigando-nos de atuar sobre a realidade presente, igualmente opressiva, embora o uso desmedido e brutal da força tenha sido substituído por formas de controle mais sutis e impessoais.
Um jovem da atualidade poderá também ficar com a falsa impressão de que havia muitas mães brasileiras com o destemor de Zuzu. Na verdade, casos como esse foram bem raros entre nós, ao contrário da Argentina, com suas loucas da Praça de Maio.
Há quem veja nesse tipo de cinema uma função catártica: ter existido uma Zuzu Angel nos lava a alma e tranqüiliza a consciência, desobrigando-nos de atuar sobre a realidade presente, igualmente opressiva, embora o uso desmedido e brutal da força tenha sido substituído por formas de controle mais sutis e impessoais.
Um jovem da atualidade poderá também ficar com a falsa impressão de que havia muitas mães brasileiras com o destemor de Zuzu. Na verdade, casos como esse foram bem raros entre nós, ao contrário da Argentina, com suas loucas da Praça de Maio.
E por que, afinal, o filme prefere destacar o episódio pouco comum de uma personalidade da alta costura que lutou contra o arbítrio apenas por ter sido pessoalmente atingida por ele, de preferência ao de milhares de brasileiros que lutaram contra o arbítrio por um ideal de justiça e solidariedade para com os explorados e oprimidos?
Ou, colocado de outra maneira: se o foco principal do filme fosse para a militância, prisão e morte de Stuart Angel, o filme teria os mesmos (vultosos) financiamentos e entraria num circuito igualmente amplo? Há dezenas de exemplos indicando que não. Como o recente Araguaya, a conspiração do silêncio, de Ronaldo Duque.
O fato é que uma parcela ínfima da população brasileira pegou em armas para enfrentar uma ditadura assassina, enquanto 80 milhões se dividiam entre preservar-se à espera de melhores tempos ou apoiar o regime em razão da uma bolha de consumo que se-lhes oferecia em troca da liberdade.
Apesar da enorme disparidade de forças, esses poucos milhares de resistentes equilibraram a luta em 1969, conseguiram a duras penas assestar alguns golpes certeiros em 1970 e foram massacrados nos três anos seguintes.
A esquerda que emergiu dessa hecatombe criticou acerbamente o vanguardismo da geração anterior e se lançou à construção de um partido de massas, que acabou desembocando em outra desilusão. Então, quando pessoas envolvidas com a esquerda atual são surpreendidas com dólares na cueca ou recebendo Land Rovers de mão beijada, nota-se uma tendência artística de buscar no passado heróico da resistência à ditadura um exemplo e um contraponto às delinqüências atuais.
Sintomaticamente, uma das primeiras perguntas feitas a Sérgio Rezende, em debate sobre Zuzu Angel que teve lugar sábado passado no cine Belas Artes, foi sobre o porquê da passividade da juventude atual.
Sintomaticamente, uma das primeiras perguntas feitas a Sérgio Rezende, em debate sobre Zuzu Angel que teve lugar sábado passado no cine Belas Artes, foi sobre o porquê da passividade da juventude atual.
Mas, tudo permanece num confortável meio-termo. Tanto que, no filme, os militantes do MR-8 são mostrados como bem-intencionados mas imaturos, enquanto a personagem principal tem o bom senso de não se meter com essas quixotadas até que lhe matam o rebento (ótima mãe, péssima cidadã!). E até o cinema em que se realizou o debate, marco da cultura paulistana, hoje pertence a um banco...
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