O Orkut, p. ex., começou bem, civilizadamente, mas logo foi invadido por hordas de extrema-direita, que, em cada debate, iam buscar textos infames nos sites fascistas para colar, às vezes sem a mínima pertinência com o que estava sendo discutido.
Isso criava um clima horrível, belicoso, obrigando à expulsão do provocador (que às vezes voltava com outro nick), desfocando a discussão, fazendo-a descambar para os palavrões e ameaças.
Qualquer que fosse o assunto inicial, tudo acabava sempre num repetitivo e panfletário tiroteio direita x esquerda. E os internautas mais equilibrados que tinham sido atraídos pelo tema, logo se retiravam em massa, afugentados pelas baixarias.
Premeditada ou não, acabava sendo uma técnica para esvaziar os tópicos.
E há também as pessoas que não se conformam com a derrota acachapante de sua argumentação e se entregam a um interminável e agônico jus sperniandi, reapresentando sob outra forma teses já rechaçadas, alfinetando ou agredindo os adversários, tergiversando, falseando, submetendo a paciência dos demais a dura prova.
Isto foi algo novo para mim. Polêmicas travadas na imprensa terminam quando uma ou ambas as partes não encontram nada de relevante para acrescentar. O espaço é valioso demais para ser desperdiçado em reafirmações do que já foi dito.
E no xadrez, outra de minhas paixões, não há como um contendor continuar a partida depois de levar o xeque-mate. Já na web, a impressão que tenho é de estar sendo obrigado a aplicar um segundo, um terceiro, infinitos mates.
Trata-se da situação pela qual acabo de passar num tópico que eu criei no portal Luis Nassif, sobre o episódio CNE x Monteiro Lobato.
Exasperado com o que considerei absoluta má fé de uma adversária, resolvi retirar-me daquela discussão e do próprio fórum, pois não via sentido em continuar sujeitando-me a estresse desnecessário.
Outros comentaristas, entretanto, fizeram-me ver que não deveria privar a todos da contribuição que poderia dar, em função dos destemperos de uma só pessoa, por mais irritante que fosse.
Não pude deixar de concordar. Assumi que havia me precipitado e comuniquei que participaria de outras discussões -- não daquela, que já considerava esgotada.
Mas, como e-mails me informavam seguidamente da inclusão de novos posts, acabei voltando lá para ver o que mais rolara. E minha curiosidade foi recompensada.
Fui surpreendido por este belíssimo texto da comentarista Simone Del Rio, que faço questão de reproduzir na íntegra:
"Estão vendo? Pegaram o Saci Pererê.
A cozinheira dos quitutes e dos doces amáveis, aquela que contava histórias do folclore brasileiro para as crianças, em contraponto com os mitos gregos de Dona Benta - grande Lobato - é um personagem vilipendiado na literatura do autor? Vão passar o rodo em Gilberto Freyre também? Ela é muito mais digna, sábia e culta do que as mães, de tudo quanto é tom de pele, desesperadas com a cracolândia carioca, assitindo às novelas da globo.
A personagem lembra a figura da ama-de-leite que nutriu e acalentou todos os falsos branquelos do império e da primeira república brasileiros. A baiana de renda e turbantes brancos era macaca para uma elite racista e míope, mas não foi como macaca que fez esse país, parindo seus filhos de norte a sul, bastardos ou não. Foi com meiguice, esperteza - para o bem e para o mal -, graça, muita coragem, dor e trabalho.
Na infame história da escravidão africana, um comércio de almas, contra a qual não se levantou uma única voz no mundo até a metade do século XVIII, consentida e abençoada pelas bulas papais, a mulher escrava teve um papel específico na nossa história. Jamais foi um papel passivo, foi sujeito e agente.
Onde enfiarão os jagas, os árabes e as rainhas congolesas e nigerianas quando estudarem a história do continente africano? E quando descobrirem que os guanches exterminados totalmente eram louros e de olhos azuis? O que fazer com André Vidal de Negreiros e o prêmio que recebeu pela bravura contra os holandeses?
A escrava trabalhou na usina, no campo, na roça, na cozinha para gente que abominava o trabalho; teve filhos do sinhozinho, e lutou para permanecer na terra, negociou alforrias, heranças, batismos e enterros. Lutou com o que trouxe e tinha nas mãos, com o seu corpo e cultura. Trouxe a culinária, a música, os cantos, a dança, a sexualidade alegre e sagrada em contraposição à mortificação do corpo das senhoras portuguesas de terço nas mãos.
Esse papel de apenas vítima não lhe cabe.
E não é com essa canetada que a igualdade racial vai ser estabelecida, porque o preconceito não se extingue com a lei, mas com o encontro e a convivência nas ruas, nas praças. A lei garante direitos, nada mais justo num país com tantas injustiças, mas não obriga o amor e a amizade em condomínios étnicos. Os beiços da minha bisavó não a diminuem em nada, mesmo que fossem comparados pejorativamente com os beiços disfarçados da brancura fake do meu avô. A mistura permitiu a beleza de muitas bocas na minha família, de gente que sabe e gosta de beijar.
Ressaltar apenas o que é negativo na obra de Lobato é ocultar a sua grandiosidade, gerar ódios e justificar mais discriminação, pena e vitimização. Difícil de sustentar diante da cor da pele dos ditadores africanos. Difícil de sustentar uma classe média que quer privilégios às custas de qualquer expediente, submetendo-se à tutela dos cada vez mais pobres professores mal formados e subservientes, num país que ainda mantém a estrutura dura e profunda da pobreza inominável e abriga a vergonha medieval contra o trabalho e o trabalhador".
Resumo da opereta: nunca devemos desanimar, quando nos defrontamos com a intolerância, o sectarismo, a obtusidade. Pois, em grupos heterogêneos, o cascalho e os diamantes se misturam. Se debandarmos diante dos primeiros, não encontraremos os segundos.
E, às vezes, estes compensam amplamente nossos dissabores.
2 comentários:
tá vendo, celso,
não dá prá jogar a criança fora junto com a água do banho. alguma coisa sempre se salva...
Zé Celso pede que Juca Ferreira fique: http://teatroficina.uol.com.br/menus/45/posts/401
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