segunda-feira, 2 de outubro de 2017

UM DOMINGO QUE FEZ OS CATALÃES LEMBRAREM DA REPRESSÃO DE FRANCO

Eis um depoimento emocionante que o inesquecível dr. Sócrates deu sobre a cidade de Barcelona, em abril de 2010:

"O catalão é um povo sofrido que até hoje busca a plena independência. Barcelona, sua capital, é motivo de orgulho. Estando na costa do Mediterrâneo, soube crescer de forma ordenada a partir de um plano piloto concebido em meados do século XIX, cujo objetivo era aproximar as aldeias ao redor a partir da derrubada das barreiras medievais que ali existiam. 

Imaginação, criatividade, talento e loucura são alguns dos adjetivos que poderiam muito bem definir aquele que é um símbolo da cidade, o arquiteto Antonio Gaudí…

Por falar em imaginação e criatividade, aqui estão a alma e a essência do que deve ser o bom futebol. E estes são atributos que não faltam ao jovem Messi, que vem sendo nesta temporada a própria expressão do que chamamos beleza e alegria desse esporte. São qualidades extremamente valorizadas pelo povo catalão, que não mede esforços para demonstrar o quanto se sente feliz em ter entre sua gente talentos como o do argentino. 
E sempre foi assim. Muitos dos últimos agraciados como melhores do mundo vestiam a malha do Barcelona quando da escolha. Inclusive Romário, Ronaldo e Ronaldinho Gaúcho. (…) E é essa energia contagiante do catalão que permite que gênios como esses citados possam exprimir totalmente a sua arte em uma região onde também nasceu ou cresceu a genialidade de Picasso, Joan Miró e muitos mais.

…o dia nacional [da Catalunha] celebrado em 11 de setembro é para lembrar mais uma derrota e onde a festa e a dança (La Sardanha) são intimistas ao extremo, contrastando com a euforia e a felicidade de outros povos e culturas. Uma história de dor, perdas e frustrações que, em vez de transformar o catalão em derrotista e cabisbaixo, o tornou mais forte e altaneiro.

No estádio,  per supuesto, o que mais vemos é a exaltação à arte dos mais qualificados. É o assombro coletivo empurrando o talento ladeira abaixo na velocidade necessária para que ele desabroche em toda a sua plenitude, para delírio da massa sedenta por essa beleza que o futebol nos oferece quando livre das amarras impostas por mentes menos arrojadas e reacionárias.

É o êxtase da liberdade e da criatividade. É o sorriso da ingenuidade de quem só quer acompanhar o desfilar da arte em sua mais profunda interpretação. São manifestações incontroláveis que denotam a total expressividade da emoção que toma conta de todos que entrelaçam as mãos em torno do clube do coração – que, mais que um time ou equipe, representa um povo e sua saga histórica.

…[e, sobre o Barcelona não vender espaços na sua camisa, mas pagar pelo uso do símbolo da Unicef] Um gigantesco exemplo de como é possível viver em um mundo essencialmente comercial, mantendo preservada a sensibilidade humana…"
Lluís Llach canta L'Estaca, canção-símbolo da resistência à ditadura de Franco

A Catalunha possui uma história diferenciada, uma identidade política e cultural que tradicionalmente a têm colocado na vanguarda das posturas idealistas e modernizantes na Espanha, que defende com muita combatividade e heroísmo. 

Foi duramente retaliada pelos fascistas após a derrota dos republicanos na guerra civil: perdeu a autonomia que havia anteriormente conquistado, todas as instituições de autogoverno foram banidas, sofreu intensa repressão e o uso do catalão foi abolido e proibido. São motivos de sobra, além dos mencionados pelo Sócrates, para eu simpatizar tanto com ela.

Ao mesmo tempo, incomoda-me o fato de ser uma espécie de ilha de prosperidade e algumas de suas lideranças atuais estarem sendo movidas pela ganância.
Querem que retenha as riquezas por si geradas, ao invés de repartir parte delas (via impostos) com regiões em situação bem pior. É pretensão semelhante à dos que gostariam de ver Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná emancipados do Brasil.

Neste domingo (01/10), a intransigência do governo central atingiu o ápice na brutal repressão por ele ordenada, cuja truculência e imbecilidade dificultará sobremaneira o equacionamento civilizado da questão.

Parece-me óbvio que a saída sensata é a realização de novo referendo, sem empecilhos de nenhuma espécie e com ambas as partes assumindo o compromisso de aceitarem o resultado, qualquer que seja. A Catalunha tem tanto direito de sair da Espanha quanto a Inglaterra de sair da Europa Unida. Boa ou má, a decisão precisa ser respeitada.

Caso contrário, mais sangue será derramado em vão.
Outra empolgante canção libertária do grande cantor e compositor catalão

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