Para os leitores terem uma ideia de como opera a indústria cultural na satanização de Cesare Battisti e de quaisquer cidadãos que se tenham tornados símbolos da luta contra a exploração do homem pelo homem, um caso exemplar é o de Alberto Torregiani, que parece ser guardado num ataúde de vampiro e dele retirado só quando é hora de prestar serviços propagandísticos aos inquisidores do Santo Ofício contemporâneo.
Desta vez quem o retirou do sono dos injustos foi a BBC Brasil, para publicar uma entrevista que até os fanáticos por novelas mexicanas devem ter achado piegas demais: esta aqui.
Assim é introduzido o lobo em pele de cordeiro cadeirante:
"Paraplégico há mais de 35 anos, Alberto Torregiani é o principal representante das vítimas de ataques atribuídos pela Justiça a Cesare Battisti na Itália. Ele luta há anos para ver o fugitivo italiano, condenado pelo atentado que o deixou paralisado e matou seu pai, atrás das grades".
"Não tenho ódio e não busco vingança. É uma questão de justiça. Tento encontrar uma lógica para o fato de viver em cadeira de rodas por culpa de alguém", etc. e tal.Bem, chega de conversa mole e vamos à verdade dos fatos.
Prestem atenção nestas três palavrinhas, atribuídos pela Justiça, que colocam uma sutil ressalva à acusação de que seria Battisti o responsável pelos ataques.
Não é novidade nenhuma: a Agência Ansa procedia da mesmíssima maneira em 2009/2010, quando tratava Torregiani como "filho de uma das vítimas de crimes atribuídos a Cesare Battisti".
Eu esclareci, na época, que a Ansa era obrigada ser reticente porque, antes de toda aquela onda, publicara uma notícia na qual esclarecera que Battisti não estava presente no atentado em que o joalheiro Pierluigi Torregiani foi morto e seu filho se tornou hemiplégico:
"...Battisti sempre afirmou sua inocência e sustenta que o disparo que deixou Torregiani numa cadeira de rodas partiu da arma de seu próprio pai.
'E o que isso tem a ver?', replica Torregiani. 'Battisti não fazia parte do comando, mas é uma questão de responsabilidade. Ele foi condenado por ter participado da tomada de decisão, por ter sido o mandante do crime, e o que importa são as intenções'".
Instado pelo repórter a justificar suas afirmações contraditórias [ficava difícil entender-se o motivo de tão extremada sanha vingativa contra quem, afinal, nem matou seu pai nem lhe causou a hemiplegia], Torregiani o fez da forma mais canhestra:
"Torregiani revelou que Battisti não participou da ação que culminou no assassinato de seu pai porque havia ido à localidade de Mestre, onde teria matado o açougueiro Lino Sabbadin. 'Está tudo nos autos do processo', explicou".
[A notícia foi distribuída no Brasil em 30/01/2009 pela Ansa e depois retirada do ar, mas certamente ainda deve ser localizável na matriz]
MEMÓRIA SELETIVA
Nas declarações que Torregiani então deu à Ansa houve, ainda, duas omissões significativas. Ele esqueceu de dizer que:
- segundo os autos do processo (aos quais pomposamente ele se referiu), os dois assassinatos foram planejados na casa do dirigente máximo do grupo Proletários Armados para o Comunismo, Pietro Mutti, numa reunião em que, segundo os promotores, Battisti teria entrado mudo e saído calado (uma vez que, inicialmente, o acusaram apenas de omissão, ou seja, não teria objetado às ações discutidas – talvez porque fosse difícil fazê-lo não tendo ele estado presente naquele encontro...);
Berlusconi com Torregiani: ópera bufa? |
- muitos anos depois e já como delator premiado, Mutti imputou mentirosamente a Battisti a autoria direta dos dois assassinatos, tendo a acusação engolido suas lorotas interesseiras como se fossem a tábua dos 10 mandamentos.
Aí a defesa levantou um pequeno e singelo detalhe: a distância entre as duas localidades (500 quilômetros) não podia ser transposta no intervalo de tempo transcorrido entre as ações (duas horas).
A derrubada de uma das infinitas mentiras de Mutti foi um embaraço? Longe disso. Os procuradores apenas remendaram a peça acusatória, colocando Battisti como assassino de Lino Sabbadin e autor intelectual da morte do joalheiro Pierluigi Torregiani...
Quanto a Mutti, a própria Corte de Milão assim se pronunciaria sobre sua teia de falsidades, em 31/03/1993:
"Este arrependido é afeito a jogos de prestidigitação entre os seus diferentes cúmplices, como quando implica Battisti no assalto de Viale Fulvio Testi para salvar Falcone, ou Battisti e Sebastiano Masala em lugar de Bitti e Marco Masala no assalto à loja de armas Tuttosport, ou ainda Lavazza ou Bergamin em lugar de Marco Masala em dois assaltos em Verona".
VÍTIMA PROFISSIONAL
Finalmente, cabe acrescentar revelação interessante que também veio à tona naquela época, em notícia d'O Estado de S. Paulo":
Chantagem emocional + sutileza paquidérmica |
"Autor do livro Já Estava na Guerra, Mas Não Sabia, em que contou sua experiência, Torregiani entrou há pouco tempo na política. É responsável pelo Departamento de Justiça do Movimento pela Itália, liderado por Daniela Santanchè...".
Para quem não sabe, tratava-se de um agrupamento reacionário cuja líder era coproprietária de um night-club para ricaços da Sardenha, uma neofascista assumida (vide aqui) que rompeu com Berlusconi por considerá-lo demasiado tímido na defesa dos ideais direitistas...
A verdadeira motivação de Alberto Torregiani se evidenciava até na cadeira de rodas colocada em primeiro plano na capa do seu livro: não passava de uma vítima profissional querendo aparecer o máximo possível no noticiário, já que engatava uma carreira política e literária nas fileiras da extrema-direita italiana.
Ao que parece deu com os burros n'água, daí continuar até hoje cumprindo o deprimente papel de servir como trunfo propagandístico contra Battisti em momentos como o atual, cada vez mais raros.
Tomara que, após a próxima 3ª feira, Torregiani volte a hibernar; e que nunca mais seus préstimos voltem a ser requisitados, até porque já está mais do que na hora de se superarem os ressentimentos e rancores de episódios tão longínquos, nos quais os dois lados praticaram crimes mas só um pagou por eles.
E está pagando até hoje: que o diga o Cesare, cuja perseguição parece não ter fim!
Ao que parece deu com os burros n'água, daí continuar até hoje cumprindo o deprimente papel de servir como trunfo propagandístico contra Battisti em momentos como o atual, cada vez mais raros.
Tomara que, após a próxima 3ª feira, Torregiani volte a hibernar; e que nunca mais seus préstimos voltem a ser requisitados, até porque já está mais do que na hora de se superarem os ressentimentos e rancores de episódios tão longínquos, nos quais os dois lados praticaram crimes mas só um pagou por eles.
E está pagando até hoje: que o diga o Cesare, cuja perseguição parece não ter fim!
3 comentários:
Caro Celso,o dito cujo anda em uma cadeira de rodas. Batistti está livre e tem mais liberdade. Interessante é que você admita que houve vítimas dos dois lados. É um progresso em relação a luta armadas do Brasil. Desculpe mas discordo totalmente de sua publicação. Abraço
William,
o Lungarzo, que sempre acompanhou com muito interesse o que saía na imprensa italiana durante os anos de chumbo, garante que Pierluigi Torregiani pertencia a um grupo terrorista de extrema-direita, daí ter trocado tiros com os membros do comando do PAC. E deveria ser incompetente até com as armas, pois acabou atingindo o próprio filho.
Eu não aplaudo ações desse tipo. Já era contrário a elas quando tinha 18 anos e ingressei na VPR. Justiçamento só cabia em casos extremos e contra inimigos que corporificassem, aos olhos do povo, as práticas hediondas da ditadura, não contra qualquer zé-mané do CCC de lá, como o Pierluigi.
Nós, da VPR, tudo fazíamos para convencer os integrantes de grupúsculos inexperientes que, p. ex., jamais deveriam efetuar ações que fossem indefensáveis do ponto de vista político e dariam péssima imagem à nossa luta se acabassem mal (p. ex., tomar arma de guarda noturno sempre embutia algum risco de ele reagir e haver troca de tiros).
Quanto à minha visão da luta armada brasileira, sempre foi a de que os maiores culpados eram os golpistas que derrubaram um governo legítimo pela força e impuseram o terrorismo de Estado. A punição do Médici deveria ser mais rigorosa que as do Brilhante Ustra e do delegado Fleury, pois ele foi o responsável último por todas as torturas e assassinatos cometidos.
De resto, o Direito das nações civilizadas diferencia a violência defensiva dos que resistem a uma tirania da violência ofensiva dos que sustentam uma tirania. Torturadores e homicidas a serviço de uma ditadura têm, sem dúvida, de ser punidos, não cabendo a alegação de que incidiram em práticas hediondas porque cumpriam ordens. Mas, a minha visão é de que os mandantes merecem punição maior que os executantes.
Vou complementar a resposta ao Orth com um longo trecho de um texto que o Lungarzo postou hoje no Facebook, tocando exatamente nesse assunto. Assim como eu, o Carlos ficou indignado com a repulsiva entrevista do Torregiani à BBC Brasil:
"Nem a polícia de Milão, que mantinha uma estreita amizade com Pierluigi (pelo fato dele ser um voluntário parapolicial, além de financiador de um time da polícia), nem os jornais, relatam os detalhes do homicídio. Apenas se sabe que dois dos três atacantes atiraram sobre ele virando-se bruscamente, pois caminhavam alguns metros na sua frente. O terceiro, Memeo, também disparou o que parece ter sido o tiro final.
Entretanto, a perícia legal colocou certa luz nesse cenário. Um boletim dessa perícia dizia, segundo foi relatado no processo de julgamento dos três atiradores, o disparo que tinha ferido gravemente Alberto provinha da arma de seu pai. Tendo em conta a animosidade da polícia contra qualquer movimento de esquerda, não cabe pensar que eles quisessem “proteger” os três atacantes. Sem dúvida, a bala foi mesmo do pai. Isso foi dito por numerosos meios, incluindo a própria magistratura.
Durante algum tempo depois, Alberto reconheceu que o tiro tinha saído da arma de seu pai. Esse assunto não foi tocado nunca mais desde (aproximadamente) 1993, quando o Tribunal de Assis fez um veredicto definitivo carregando a Battisti com as quatro mortes cometidas pelos outros membros dos PAC e, aliás, com mais da metade de todos os outros delitos (furtos, roubos, etc.) cometidos pelo grupo.
Alberto Torregiani diz que ele não quer vingança nem tem ódio. Tudo bem. Mas, eu me pergunto: como chama toda esta ...? São 39 anos de perseguição, muito mais do tempo que foi perseguido Trotsky, e até algo mais do que foi perseguido Mandela.
O ressentimento, embora não ajude ninguém e estrague a vida, é algo humano, faz parte de nossas falhas no processo evolutivo. Porém, o ressentimento é quase mecânico; parece ser uma reação contra alguém que atuou como nosso agressor. Então, fica um grande mistério: por que o ressentimento se volta, neste caso, a Battisti, que tinha se dissociado do PAC já antes mesmo do homicídio?
Memeo, Grimaldi e Sebastiano Masala atiraram contra o pai de Alberto, fizeram fogo cruzado sobre ele, mas tiveram cuidado de não atingir as crianças. O senhor Pierluigi, cujos filhos parecem não ter sido adequadamente poupados, replicou o fogo, talvez sem pensar que alguma bala perdida poderia bater neles. Segundo historiadores da época, Torregiani pai era um exímio atirador. Cabe imaginar-se que uma resposta muito seletiva não teria atingido nenhum inocente.
Se Alberto pensa que a culpa de tudo foi dos três atiradores, por que ele concentra seu ressentimento em Battisti, que nada teve que ver com os fatos? Apesar das torturas, nenhum dos três acusou Battisti de participação no fato.
Como você podem ler na Wikipédia, os três assumiram sua responsabilidade, e nunca se retrataram. Por que o inimigo é Battisti? Será porque ele não quer reconhecer um crime que não cometeu? Mas, alguém gostaria de reconhecer, apenas por cortesia, um crime alheio?"
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