Tento não ser sectário em esfera nenhuma da minha vida. Tenho convicções a que a razão me conduziu, mas evito ciosamente aferrar-me a elas quando a experiência vivida ou presenciada as desmentem.
P. ex., já vi fenômenos inexplicáveis à luz da ciência, dando-me a certeza de que o bardo tinha razão: há mesmo mais mistérios entre o céu e a terra do que os doutos admitem.
O difícil é nos aprofundarmos na origem e limites de tais fenômenos. São espíritos de pessoas mortas? Forças que os vivos ignoramos possuir, mais acentuadas em algumas pessoas do que nas outras? Os deuses das várias religiões em ação? Extraterrestres muito mais desenvolvidos do que nós, fazendo-nos de joguetes?
Gostaria de ter o tempo disponível e os recursos de um Houdini, que consultava os mais famosos profissionais dedicados a estabelecerem pontes com o além, na esperança de encontrar um que realmente fosse capaz de colocá-lo em contato com sua falecida mãe, acabando, contudo, por constatar que não passavam de charlatães. Desconstruir truques baratos era brincadeira de criança para o maior mágico de sua época.
Raul Seixas e Paulo Coelho tentavam adquirir conhecimentos importantes lendo obras dos grandes bruxos do passado, que chegavam a traduzir pessoalmente. Que eu saiba, o Raulzito nunca aprendeu a fazer chover ou a transformar chumbo em ouro, mas não saiu de mãos abanando: obteve inspiração para suas músicas e seu personagem, dentro do clima brincalhão que o caracterizava.
Crowley, o bruxo favorito do Raulzito |
Paulo Coelho, ao que tudo indica, idem, idem. Só que fez seus leitores levarem a sério o que não o era nem nunca foi, aplicando pela segunda vez o conto do Castañeda. [Trata-se de um antropólogo que, após estudar com muito afinco as práticas dos feiticeiros mexicanos, criou belas obras de ficção a respeito de ter sido pessoalmente iniciado naqueles cultos que, por coincidência, utilizavam o poder alucinógeno dos cogumelos, um xodó da era hippie...]
Eu detestei ter sido ludibriado pelos três primeiros livros do espertalhão. Mas, há pessoas que precisam acreditar em qualquer coisa, e estas estão sempre à cata de Castañedas e Coelhos.
Lembro-me da minha estupefação quando promotores paulistas e o jornal O Estado de S. Paulo reduziram a pó de traque a Igreja Universal do Reino de Deus, mas o rebanho continuou a crer piamente nos seus maus pastores, atribuindo as denúncias acachapantes de exploração da fé, curandeirismo, estelionato, lavagem de dinheiro, etc., a maquinações do demo...
Algo que permanece nebuloso para mim são certos acasos que se verificaram ao longo de toda a minha vida. P. ex., os nomes que eu e as companheiras de então escolhemos para nossas três filhas (uma adotiva e duas biológicas) acabaram sendo, de certa forma, pressagos.
Tornaram-se o que são em função da expectativa que tínhamos em relação a elas (embora evitássemos expressá-la na sua frente) ou foi algum tipo de premonição? Ou, ainda, mera coincidência? Como saber?
E por que me vi envolvido, muito depois, em situações semelhantes às de dois dos livros que mais impactaram em mim quando, lá pelos meus 13, 14 anos, começava a procurar na biblioteca circulante algo além de aventuras fantasiosas?
Não tenho a mínima ideia do motivo de eu me sentir atraído por A tragédia de Sacco e Vanzetti, do Howard Fast; ou do porquê de a leitura me haver sensibilizado tanto. E quando, já cinquentão, comecei a interessar-me pelo Caso Battisti, nem de longe me ocorreu haver similaridade.
Até porque ela, inicialmente, inexistia. O companheiro Laerte Braga, com melhores contatos de bastidores do que eu, garantiu-me que o Comitê Nacional para os Refugiados garantiria ao Cesare o direito de permanência no Brasil, ponto final. Tinha escrito um artigo defendendo-o, escrevi outro na véspera da decisão e estava confiante em que tudo acabaria aí.
Quando a decisão do Conare foi adversa, percebi de imediato que o episódio ganharia proporções bem maiores. E um integrante do Comitê de Solidariedade me ligou de Brasília, pedindo ajuda para a batalha de comunicação que se prenunciava.
Previ que seria longa e difícil. E, avaliando os quadros que estavam ao lado do Cesare, constatei que não havia um comunicador com mais experiência do que eu neste tipo de luta (já havia vencido duas, a da greve de fome dos quatro de Salvador e a da minha anistia).
Resolvi assumi-la e passaria longos anos fazendo das tripas coração para contrabalançar a tendenciosidade extrema da nossa imprensa e os recursos enormemente superiores de que dispunha o outro lado. Só no meio do caminho me dei conta de que se tornara o episódio mais próximo do Caso Sacco e Vanzetti alguma vez sucedido no Brasil.
Já O Processo, do Kafka, eu li por indicação de um grande amigo, muito jovem para entender a razão de tudo aquilo (em nenhum momento me ocorreu que fosse, de certa forma, uma antevisão do que os judeus sofreriam sob o nazismo).
Mas, a destruição de Joseph K. por parte de uma burocracia sem face mas com poder de vida e morte sobre um cidadão comum me chocou. E, lendo os finais alternativos que foram colocados no apêndice, identifiquei-me demais com aquele em que o Kafka mostra o personagem não se resignando à execução, mas tendo um impulso derradeiro de reação e erguendo a mão para deter a arma assassina.
Ora, as minhas agruras atuais com a indenização retroativa têm muito a ver com o pesadelo kafkiano. Algum burocrata bem situado mexeu os pauzinhos para que uma questão já decidida em 2011 (quando do julgamento de mérito por parte do STJ) se tornasse uma história sem fim, com a União recorrendo a todo tipo de artifício legal para protelar um desfecho inevitável.
E, tal qual Joseph K., reajo e ergo minha mão, mas os poderosos não dão a mínima. Denuncio verdadeiras aberrações legais e a imprensa permanece indiferente, enquanto autoridades omissas olham para o outro lado. E muitos (principalmente os ditos organizados) que deveriam encarar o episódio como parte do bom combate, parecem ter aderido ao solidariedade zero...
Felizmente, ao contrário da distopia do Kafka, há também companheiros solidários, e não são poucos. Alguns chegam a me comover, tal o desprendimento e o carinho que demonstram. Nem tudo está perdido.
Fico em dúvida se outro livro marcante dos meus verdes anos se materializou na minha vida atual porque meu interesse por ele foi de alguma forma premonitório, porque atraí tal destino com minhas obsessões ou, o que sempre parece mais provável, tudo não passou de mera coincidência.
Enfim, o Caso Sacco e Vanzetti daqui não terminou com a execução de réus inocentes, mas sim com uma das maiores vitórias da esquerda nas batalhas legais das últimas décadas. Algum dia, tenho certeza, isto será reconhecido, pouco me importando o fato de que provavelmente não estarei mais aqui para presenciar.
E tudo leva a crer que, nesta miniatura d'O Processo em que me debato, a reação de Joseph K. não terá chegado tarde demais.
Mesmo que exista algum destino fixado para nós, temos o poder de mudá-lo; ou, na pior das hipóteses, mais vale morrer lutando contra ele do que aceitando-o passivamente.
Mesmo que exista algum destino fixado para nós, temos o poder de mudá-lo; ou, na pior das hipóteses, mais vale morrer lutando contra ele do que aceitando-o passivamente.
"Se este rumo assim foi feito/ sem aprumo e sem destino/ saio fora deste
leito/ desafio e desafino./ Mudo a sorte do meu canto/ mudo o norte
desta estrada/ que em meu povo não há santo/ não há força e não
há forte/ não há morte e nem há nada/ que me faça sofrer tanto"
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