segunda-feira, 21 de agosto de 2017

POR QUE O BRASIL É MATERIALMENTE RICO E SOCIALMENTE POBRE?

"Eu, que amo meus amigos
Livre, quero poder dizer:
Eu tenho esses peixes e dou, de coração
Eu tenho essas matas e dou, de coração"
(Milton Nascimento/Fernando Brant)

lógica da riqueza abstrata tem a capacidade infame de transformar riqueza material em pobreza, ou em riqueza abstrata concentrada. O Brasil é um dos mais eloquentes exemplos disto. 

A lógica da produção de riqueza abstrata (concomitantemente concreta e abstrata), e não de riqueza material (apenas concreta), foi, historicamente, o maior achado que os eternos segregadores sociais encontraram para substituir o aviltante escravismo direto. Assim, ao invés de os seres humanos serem propriedade de outros seres humano em termos formais, passaram a sê-lo de maneira velada, indireta, pelo sistema sutilmente escravagista do trabalho abstrato, produtor de valor econômico. 

O resultado disto é o que estamos a constatar: um país rico materialmente como o Brasil vivendo sob um regime de barbárie social, com um grande contingente populacional à margem do consumo e, agora, até mesmo do processo de produção de mercadoria (são os considerados supérfluos sociais pelo capitalismo).

Qualquer turista do chamado 1º mundo que chegue ao Brasil e queira conhecer seu imenso território, ficará estarrecido com a constatação de dois fatores claramente perceptíveis e contraditórios:
— o consumo desmedido por parte das reduzidas classe A e B, contrastando vivamente com o enorme contingente de cidadãos pauperizados nas classes C e D; e 
— e a comprovação da imensa riqueza material brasileira. 

Isto ocorre porque, no mundo mercantil, aqui e no restante do planeta, somente aquilo que é capaz de produzir riqueza abstrata (valor expresso em dinheiro e mercadoria) tem importância. É emblemático, p. ex., que, mesmo nos países ricos que produzem grandes quantidades de grãos de alimentos, a participação do setor primário da economia (agricultura e agronegócio) na formação do PIB seja insignificante; caso dos EUA, com o setor agrícola contribuindo com apenas 1,9% para o PIB.

As mercadorias mais lucrativas, nestes tempos de depressão econômica mundial, são aquelas que trazem embutidas na sua produção um alto grau de conhecimento tecnológico, cujo valor não se expressa nas horas de trabalho abstrato nelas incorporados, mas sim em segredos industriais e reservas de mercado das patentes de produção.
São as mercadorias com produções tecnológicas sofisticadas (aliadas a fatores de controle monetário e endividamento a juros baratos e de longo prazo) que ainda dão sustentação aos países do 1º mundo. Caso dos aviões e armas mais modernas, dos remédios de última geração, dos apetrechos tecnológicos de comunicação e tantas outras com alto grau de tecnologia, que produzem valor além do trabalho abstrato nelas coagulado e cujos produtores guardam ciosamente os seus segredos industriais como uma forma de sobrevivência na guerra de mercado. 

Tudo isto conspira contra a melhor forma de vida social e saber já adquirido pela humanidade.     

Um exemplo do peso que logo assume a produção industrial que requer alta tecnologia e investimento de grande capital é encontrado no Ceará. Todas as exportações tradicionais do Estado (castanha, lagosta, peles e couros, etc.) e os poucos produtos industrializados como calçados, foram imediatamente superadas pela exportação de aço por parte da recém-instalada Companhia Siderúrgica do Pecém. 

Esta já responde por 51,5% das exportações cearenses; o minério de ferro inerte nas terras amazônicas de Carajás somente passa a ter grande valor quando, processado industrialmente, se transforma na mercadoria aço. 
Aço é in, as rendas cearenses feitas à mão são out...

A lógica da industrialização mercantil prevalece avassaladoramente no capitalismo; e o seu processo de produção social é dos mais desumanos, sem que as pessoas se apercebam da tragédia social que nele está embutida. 

A negatividade da lógica mercantil também é comprovada pelo fato de só se produzirem as mercadorias aptas a competir no mercado, pois o objeto primeiro da produção de mercadorias não é satisfazer as necessidades dos que apenas delas fazem uso, mas sim gerar lucros.

No nordeste brasileiro as terras estão sendo abandonadas simplesmente porque o baixo nível de produtividade, aliado à seca cada vez mais intensa provocada pelo irracional aquecimento global, inviabiliza qualquer produção agrícola. E isto ocorre no país que tem o maior volume de m³ de água doce por km² no mundo. Entretanto, a imensa quantidade de água existente na Amazônia não é transposta para o Nordeste por fatores econômicos. 

Caso se excluísse a lógica mercantil de produção de mercadorias como modo de mediação social, as terras nordestinas se tornariam exuberantemente férteis, em função das suas condições climáticas estáveis e do possível enriquecimento do solo a partir das técnicas agrícolas já existentes. 

Para que isto ocorra é necessário que a tirania do mercado não prevaleça sobre a vida. 

Que país tem tanta riqueza material como o Brasil? Que país tem:
— tantas terras férteis em abundância e uma baixa densidade demográfica relativa?
— capacidade de produção dos mais variados tipos de energia limpa, como a fotovoltaica, a eólica e e hidráulica, além das tradicionais energias poluentes?
— um clima temperado que nos permite produzir ininterruptamente ao longo do ano?
— os mais variados tipos de minerais? 
— uma população já acima de 200 milhões de habitantes, de etnias diversas e aptas à produção?

Entretanto, existem quase 14 milhões de brasileiros (que, com seus familiares, correspondem a ¼ da população brasileira) desesperados em busca da sobrevivência, apesar de estarem aptos para o trabalho.

Podemos afirmar, sem nenhum medo de estarmos fazendo uma análise superficial e ilógica, que a causa de tamanha insensatez e miséria social reside numa relação social que se tornou anacrônica graça ao descompasso ora atingido entre forma e conteúdo. 

Mas, isto não se diz a plenos pulmões nem se explica nas escolas, academias, corporações classistas, parlamentos, etc.,  porque significaria o início de uma revolução contra tantos privilégios odiosos e mesquinhos. E nossa acovardada coletividade, infelizmente, reluta em admitir a necessidade de transformação de suas práticas sociais, não querendo tomar consciência do caráter negativo dos seus mecanismos de mediação social. 
Está gravemente doente uma sociedade: 
— que precisa de muros altos, grades, cercas elétricas, aparelhos de filmagens, guardas na porta e uma infinidade de outros apetrechos de segurança para evitar assaltos e agressões bárbaras;
 que nos obriga a evitarmos sair às ruas com dinheiro e objetos de valor, sob pena de sofrermos assaltos à mão aramada;
— que nos obriga a conseguir dinheiro (cada vez mais difícil de ser obtido) se quisermos adquirir remédios e dispormos de de atendimento médico, educação, alimentação e moradia;
— que impede homens e mulheres aptos à produção de obterem o seu sustento graças aos próprios esforços (este, certamente, é o exemplo mais clamoroso da irracionalidade sistêmica!);
— que nos faz encarar com medo e até pavor a chegada à velhice, dada a enorme possibilidade de ficarmos desamparados em função dos recursos previdenciários serem parcos e estarem cada vez mais ameaçados;
— cujo índice de assassinatos diários é maior que o das guerras convencionais; 
— que registra quantidade tão acentuada de assaltos diários aos caminhões de cargas de mercadorias e aos postos bancários das capitais e cidades interioranas, e por aí vai. 

Vivemos numa sociedade gravemente doente, que precisa ter os seus fundamentos funcionais discutidos com profundidade e coragem.

O Brasil é rico materialmente e nós não podemos admitir que os brasileiros amarguem tanta miséria social, provocada pela lógica da riqueza abstrata. 

É hora de fazermos com que um prato de comida na mesa de todos sob um teto decente seja mais determinante na tomada das decisões macroeconômicas do que o ajuste das contas públicas.

É hora de fazermos a solidariedade humana prevalecer sobre a guerra concorrencial de mercado que nos coloca a todos contra todos, transformando-nos em adversários permanentes numa autofagia irracional.
        
É hora de estabelecermos a fraternidade humana em contraponto à ilogia de uma forma de relação social segregacionista que chega ao limite funcional como consequência dos seus fundamentos irracionais e mesquinhos. (por Dalton Rosado)

Nenhum comentário:

Related Posts with Thumbnails