sábado, 10 de junho de 2017

APOLLO NATALI DÁ UMA AULA SOBRE SONETOS E MOSTRA BELOS EXEMPLOS (INCLUSIVE UM DE SUA AUTORIA)


"Para que servem os poetas?
Ajudam-nos a amar"
(Anatole France)
Tinha que ser francês.Tinha que ser da terra dos homens que revolucionaram o mundo. Pois foi o trovador Girard de Bourneuil, da província francesa de Limousin, o criador do soneto, no século 13.

Faz 700 anos. Morreu em 1278 sem imaginar as glórias destinadas a esse profícuo produto de seu espírito, o poema de forma fixa, monumento imortal da poesia, o mais difícil dos gêneros poéticos, que haveria de imortalizar nomes, constituir relíquias de tantas literaturas, cantar o amor, a paixão, a saudade, o choro das almas, a dor. Tudo espremido em uma dúzia de rimas leves, cadenciadas, que afunilam numa conclusão, chamada de o fecho das lágrimas e dos gemidos.

Olha este fecho: “Há mais luz nas letras do alfabeto/ que nas constelações do firmamento”. 

E para o carnavalesco: “Agarra-te à alegria passageira/ olha o que o que te espera ao fim de contas/ é o triste carnaval da vida inteira”. 

E este, do delegado de polícia de Teresina no começo do século 20, Celso Pinheiro: “Meu Deus, como seríamos felizes/ tu rezando os sonetos que te escrevo/ eu rezando as palavras que me dizes”.

Petrarca fez florir na Itália o soneto, que foi acolhido em Portugal, que se bandeou para a Espanha, que se dispersou pelo mundo inteiro, que voltou triunfante à França no século 16, que no Brasil se transformou em rico porta-joias de sentimentos e emoções. De todas as partes brotaram sonetos, com mais intensidade e número no Pará, Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Sergipe, Alagoas, Paraíba, Pernambuco, Minas, Espírito Santo, Bahia.
Antes emperrado em rígidas correntes clássicas que não lhe davam a mínima liberdade, revoltou-se, quebrou os grilhões e tornou-se popular. A totalidade dos sonetistas brasileiros antigos, os chamados clássicos, é formada por jornalistas, advogados, magistrados, cônsules, políticos, ministros, funcionários de ministérios, secretários de Estado, religiosos, militares. 

Pouquíssimos dos nossos poetas deixam de cultivar o soneto, até preenchendo livros inteiros com eles. Delegados de polícia nos legaram formosos porta-joias.

Para ser legítimo, e portanto belo, ensina-nos Théophile Gautier, o soneto deve obedecer ao modelo tradicional do paralelismo das duas rimas dos quartetos, dos dois tercetos bem destacados e do conceito no último verso, fechando o poema. Do começo ao fim, cada quarteto e cada terceto devem ter, sem exceção, onze sílabas. 

Esse capricho das onze sílabas, exatamente onze, nem mais nem menos, lhe confere sua marca: a agilidade sem esforço, o ritmo cadenciado, o balanceio confortador das canções de ninar, uma cavalgada suave, sem tropeços nem sobressaltos, o sussurrar das águas de um regato descendo a montanha.
As rimas devem ser surpreendentes e o fecho¸ dramático. O ritmo veloz ou não de leitura dos sonetos é escolha minha, tua, nossa.

O soneto sofre mesmo em mãos experientes. Até os mais consagrados sonetistas tropeçam. Pura canseira da prosa são os sonetos com quinze, até vinte sílabas nos quartetos e tercetos. Há os que pisam bruscamente no freio da cadência, com nove silabas. Abrigo de rimas ricas, o soneto discrimina rimas pobres. Combinar amor com dor é de uma miserabilidade de rima desalentadora.

No célebre Ouvir estrelas, o próprio grande Olavo Bilac quebra a harmonia dos sons no penúltimo verso: “Pois só quem ama pode ter ouvidos“. Este tropeço é tido por críticos como uma espécie de soco na eufonia. 

Raimundo Correia, em seu Mal secreto, com a colisão ca-con, comete cacofonia: “Cuja ventura única consiste”. Sonetar é padecer do labor da forma, da tortura da perfeição.  

Por último, eis exemplos de sonetos, cinco de autores famosos e o sexto, nem tanto... (por Apollo Natali) 

PRANTO E RISO
(esta pérola do começo do século 20, é de um delegado de polícia da capital paulista,
Alfredo Eugênio de Paula Assis. Sacou do seu coldre o paralelismo
destas rimas, o ritmo, a mensagem, o fecho lapidar)
.
No pranto da criança não diviso
mágoa nenhuma, é tudo luz e encanto;
Tem, nuns restos de céu e paraíso,
toda a alegria matinal de um canto.

Mas, de um velho, num rápido sorriso,
mágoas profundas eu percebo entanto!
No pranto da criança há quase riso,
no sorriso do velho há quase pranto!

Ri-se o velho, é um pôr de sol que chora
chora a criança, é como se uma aurora
num chuveiro de pérolas se abrisse;

E tem muito mais luz, mais esperança
a lágrima nos olhos da criança
que o sorriso nos lábios da velhice.
.
NUM VELHO CONVENTO
(este é  de Raul Barreto de Albuquerque Maranhão, advogado, 
pernambucano de Recife, metade do século 20)
.
No âmbito sepulcral deste convento,
na arcaria do claustro que examino
como medita o nosso pensamento
sobre as vicissitudes do destino

Cada pedra revive um sofrimento
e neste ambiente místico e divino
são gemidos de dor, queixa, lamento
os sons plangentes do seu velho sino

Quando ele estava sendo edificado
há três séculos, certo, quem o visse,
cuidaria ficasse eternizado

Agora é ruína que se desmantela
sepultando na queda da velhice
os segredos de amor de cada cela
.
DOR OCULTA
(a aventura da gotinha d’água é o tema deste soneto
do mestre Guilherme de Almeida)
.
Quando uma nuvem nômade destila
gotas, roçando a crista azul da serra,
umas brincam na relva; outras, tranquilas,
serenamente, entranham-se na terra

E a gente fala da gotinha que erra
de folha em folha e, trêmula, cintila,
mas nem se lembra da que o solo encerra
da que ficou no coração da argila

Quanta gente, que zomba do desgosto
mudo, da angústia que não molha o rosto
e que não tomba, em gotas, pelo chão

Havia de chorar, se adivinhasse
que ha lágrimas que correm pela face
e outras que rolam pelo coração
.
(sem título)
(soneto engendrado na hora da morte por Gregório de Matos, baiano, século 17, 
advogado, escritor, contista, crítico dos costumes e de governantes, apelido
Boca do Inferno, herege na visão da Igreja, criador dos primeiros laços
da nossa nacionalidade, fundador da literatura brasileira, o primeiro
no mundo a escrever Entre sem bater! na porta de sua banca,
depois que a polícia o espancou e deixou estendido no chão)
.
Pequei, Senhor, mas não porque hei pecado
da Vossa Alta Piedade me despido
antes, quanto mais tenho delinquido,
vos tenho a perdoar mais empenhado

Se basta a vos irar tanto pecado
a abrandar-vos sobeja um só gemido
que a mesma culpa que vos há ofendido
Vos tem para o perdão lisonjeado

Se uma ovelha já perdia, glória tal
e prazer tão repentino vos deu,
como afirmais na sacra história,

Eu sou, Senhor, ovelha desgarrada
salvai-a, e não queirais, Pastor Divino,
perder na vossa ovelha a vossa glória.
.
DINAMEME
(agora é Camões. Ah, é? Para a sua chinesinha. A que mais amou na
vida, entre as dezenas que teve, dizem que centenas, ao redor do
mundo. Desfrutavam da vida, felizes, numa gruta, sabiam?)
.
Alma gentil que te partiste
tao cedo desta vida descontente
repousa lá no Céu eternamente
e viva eu cá na terra sempre triste

Se lá no assento Etéreo onde subiste
memória desta vida se consente,
não te esqueças daquele amor ardente
que já nos olhos meus tão puro viste

E se vires que pode merecer-te
alguma coisa a dor que me ficou
da mágoa sem remédio de perder-te

Roga a Deus que teus anos encurtou
que tão cedo de cá me leve a ver-te
quão cedo de meus olhos te levou
.
A MELHOR IDADE
(este é de minha autoria, fresquinho, cometido há algumas semanas;
bem que merece tolerância. Bailem com seu ritmo triste)
.
Maneira de dizer: não é se queixar
esta minha idade, a melhor idade,
morta toda e qualquer vaidade,
dizer que é bela é jeito de falar

Maus dentes, gengivas, lábios a preguear,
pele riscada, rugas, cavidades,
estar sozinho é privacidade
passos miúdos, rosto a afinar

O tempo nunca para, sonhemos,
não tem fim o viver, caminhemos,
e de qualquer maneira, gostamos

Mas se o tempo não pára, cremos,
se gostamos da vida e vivemos,
que pena, somos nós que paramos

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