quarta-feira, 31 de maio de 2017

MÚSICOS E CANÇÕES QUE ILUMINARAM A MINHA VIDA (parte 4)

(os posts anteriores desta série do Celso Lungaretti estão aquiaqui e aqui)
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A Orquestra Armorial entra como representante do movimento armorial, que, na década de 1970, buscou criar uma arte erudita a partir de elementos da cultura popular do Nordeste brasileiro. 

Tendo como seus principais idealizadores o escritor Ariano Suassuna e o maestro Cussy de Almeida, o movimento influenciou várias expressões artísticas, como a música, a dança, a literatura, as artes plásticas, o teatro, o cinema e a arquitetura.

No primeiro caso, os destaques são o Quinteto Armorial e a Orquestra Armorial. Esta última, quando estreou em outubro de 1970, incluía no seu nome o complemento de Câmara, mas preferiu simplificar as coisas quando começou a gravar discos, para não afugentar o público menos simpático à música erudita...
Cussy de Almeida

Ambos faziam uma abordagem sofisticada das raízes nordestinas, mas, depois de uns 20 minutos de música instrumental sempre com o mesmo jeitão, o ouvinte começava a ficar entediado ou a mantê-la como sonoridade de fundo, tipo muzak. 

Exceções são, nos discos lançados em 1975 pela Orquestra Armorial, "Kyrie", que tem forte presença de coral, fugindo do ramerrão; e, principalmente, "Côco praieiro", estilização de um desafio de repentistas, com versos de Marcus Accioly. 

Trata-se de um contraponto à rústica Peleja do Cego Aderaldo com Zé Pretinho, baseada num clássico da literatura de cordal, que consta do disco do Show Opinião, na voz de Nara Leão. E é uma pérola que jamais poderia faltar aqui!
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Paulo César Pinheiro talvez tenha ficado mais conhecido do grande público como o então marido da cantora Clara Nunes, vitimada em 1983 por reação rara a uma anestesia, do que como o extraordinário cantor e poeta brasileiro que ele é, autor de mais de 2 mil músicas, a metade das quais gravada. 
É carioca e compõe desde os 15 anos, inicialmente tendo João de Aquino como parceiro. Mas, foi a colaboração com o violonista Baden Powell, principiada aos 16, que o colocou no repertório de artistas famosos como Elis Regina e Taiguara, aos quais seguiram-se dezenas de outros. 

Embora geralmente se apresente interpretando sambas, a qualidade poética de Pinheiro se evidencia mais em projetos ambiciosos nos quais incursionou por outros ritmos brasileiros, como o espetáculo O importante é que a nossa emoção sobreviva (1974), reunindo ele, Eduardo Gudin e a cantora Márcia, que gerou um disco gravado ao vivo durante a longa temporada no teatro Oficina e outro, de estúdio, dois anos depois.

E é simplesmente notável sua letra de "Matita Perê", que faz parte da trilha sonora do ótimo filme Sagarana, o duelo (assista-o aqui), criada por Antônio Carlos Jobim. Mas, como a incorporação da melhor versão, com o dueto dele com Jobim em 1980, foi bloqueada pelo Youtube, o jeito é contentarmo-nos com o poema "Cautela" + a música "Mordaça", fusão que abre o LP a três vozes de 1974.
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Paulo Vanzolini, outro poeta extraordinário, nos deixou até hoje lamentando sua opção de ser principalmente zoólogo e dedicar-se à música nas horas vagas. Que desperdício de talento! [Desculpem-me os zoólogos, mas é minha opinião sincera...]

Assisti-o certa noite, lá pelos meus 16 anos, sendo entrevistado pelo Silveira Sampaio (cujo talk show botava o do Jô Soares no chinelo...). 

Depois do papo, Luís Carlos Paraná foi chamado para interpretar músicas do Vanzolini, inclusive "Capoeira do Arnaldo", que me encantou instantaneamente.

Ambos eram parceiros de noitadas e desafios musicais na boate Jogral, de propriedade do Paraná, na verdade um ponto de encontro de amigos ligadões na MPB. Foi lá que o amigo Arnaldo duvidou que Vanzolini fosse capaz de compor uma música em jargão nordestino e ele, de estalo, criou a capoeira, dedicando-a ao dito cujo. Para minha decepção, o Vanzolini disse que esta música não seria gravada, porque ele a fizera só para o Arnaldo. 

Fiquei radiante quando, quase 10 anos depois, caminhava pelo centrão velho de São Paulo e a ouvi sendo tocada num sebo. Afinal, o Paraná a acabara gravando num compacto simples! Comprei correndo, emocionado.

Mas Vanzolini, o outro sambista genial que São Paulo produziu além de Adoniran Barbosa, foi também autor de "Volta por cima", uma das maiores composições brasileiras de todos os tempos; da maravilhosa "Boca da noite", sobre uma noite de amor sem futuro, "gente da nossa estampa/ não pede juras nem faz/ ama e parte e não demonstra/ sua guerra e sua paz"; de "Ronda", aclamadíssima; e tantas preciosidades mais. Ah, se ele priorizasse a música...
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Meu alheamento com relação a Raul Seixas, quando ele começou a se tornar nacionalmente conhecido, me deveria valer um troféu de homem sem visão! Em setembro de 1972, passei batido pela sua marcante performance no VII FIC da Globo, interpretando "Let me sing, let me sing" e acompanhei, sem dar muita importância, o sucesso de "Ouro de tolo", lançado em compacto no mês de maio de 1973 e dois meses depois incluída no LP Krig-ha, bandolo!.

É que vinha de duas decepções consecutivas, a derrocada da luta armada (que quase me destruiu) e o fim da comunidade alternativa na qual, depois de libertado, fora lamber as feridas e juntar os cacos. E, de repente, voltara à estaca zero.

Enfurnei-me numa quitinete com a companheira que me restara e me limitei durante certo tempo a curtir o amor, os livros e os discos, distanciando-me o máximo possível da realidade exterior. Trabalhava como zumbi em agências de comunicação empresarial, sonhando com o momento de voltar para o meu canto. E curtia o rock de melhores tempos, de preferência à MPB que me parecia ter sido esvaziada pela ditadura.

Ainda assim, Raul Seixas me alcançou. Foi em 1978, quando, cansado do isolamento de ermitão, saí da toca: retomei o curso de Jornalismo na ECA-USP para ter condições legais de trabalhar nas redações ao invés de ficar me escondendo dos fiscais em empresas de RP; e comecei a colaborar em revistas de música e cinema.

Aí me caiu nas mãos o álbum duplo O banquete dos mendigos, com registros de um espetáculo comemorativo dos 25 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, proibido pela censura em 1973 e liberado em 1979. Só então, com seis anos de atraso, fiquei conhecendo "Cachorro urubu", a canção do Rauzito alusiva à primavera parisiense de 1968! 

"Todo jornal que eu leio/ me diz que a gente já era/ que já não é mais primavera./ Oh, baby, a gente ainda nem começou!" Fiquei todo arrepiado. E aí me interessei em conhecer suas outras canções, encontrando algumas que vinham totalmente ao encontro de minha visão de mundo, como "Metamorfose ambulante", "Sociedade alternativa" e "Tente outra vez".

Coincidentemente, ocorreu a primeira coletiva do Raul em Sampa após ele ser contratado pela CBS. Foi convencional, desinteressante.

Quando já me preparava para sair, o divulgador, que gostava dos meus textos, convidou-me para almoçar com ele, o Raul e a Kika num restaurante chinês próximo. 

Aí o Raul, turbinado pelo saquê da casa e pelo uísque que trazia consigo numa garrafinha metálica, se soltou. E a coisa se tornou bem pitoresca.

Resolvi, no meu texto, liquidar a coletiva em cinco linhas e utilizar umas 35 para relatar as maluquices do almoço; inclusive, contei como me lavou a alma ouvir os versos de "Cachorro urubu" em meio ao marasmo de 1979.

Para minha surpresa, logo depois de a revista sair, ele me ligou na redação, cumprimentando-me pelo texto e convidando-me para um happy hour da CBS. Papeamos um pouco, bebemos muito. Tive depois de transportá-lo para seu hotel, pois estava quase desmaiando.

Devo ter ido umas duas ou três vezes visitá-lo em sua casa no bairro de Pinheiros, sempre a convite dele, para conversar sobre o 1968 que passara em nossas vidas e o que acontecera depois. Contou-me muita coisa que os porres apagaram da minha mente, inclusive sobre os livros de bruxos famosos que ele e o Paulo Coelho eram obrigados a traduzir parágrafo por parágrafo para seus estudos esotéricos, pois não existiam edições em idiomas facilmente compreensíveis.

A amizade foi fugaz, mas nunca deixei de reconhecer nele um talento superlativo e o artista mais fiel ao espírito de 1968 dentre todos que conheci em cinco anos de jornalismo musical..
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Sérgio Ricardo merece ser lembrado como um dos maiores nomes da MPB engajada no protesto político e social; autor de trilhas sonoras impecáveis para cinema e TV; diretor de um curta e três longa metragens marcantes, com destaque para o criativo musical A noite do espantalho; e até como um raro exemplo de artista tão fiel à sua ideologia que optou por morar junto com o povo explorado, na favela do Vidigal (RJ).  Não pelo folclórico episódio do II Festival da Record, quando, inconformado com as vaias que lhe impediam de cantar sua "Beto bom de bola", quebrou o violão e arremessou-o contra o público.
Paulista de Marília, mudou aos 18 anos de idade para o Rio de Janeiro, onde foi locutor de rádio e tocava piano em casas noturnas. Ao longo dos anos 50 chegou até a trabalhar como ator de teleteatro, além de gravar alguns compactos e um LP de bossa-nova, mas sua carreira decolou mesmo foi no início da década seguinte, quando partiu para as músicas com temática social, começando pelo clássico "Zelão".

Em 1963 uniu-se ao Centro Popular de Cultura da UNE, entrando em contato com o pessoal do cinema novo. Como consequência, dirigiu seu primeiro longa, Esse mundo é meu, cuja canção-tema fez algum sucesso na voz de Elis Regina, e foi convidado por Glauber Rocha para compor e interpretar, ao estilo de cantador nordestino, as músicas de Deus e o diabo na terra do sol. O cineasta baiano teve até de ofendê-lo ("Canta como homem, porra!") para arrancar dele uma interpretação rude, ao invés do balanço característico da bossa-nova, mas compensou: parte do sucesso dessa obra-prima se deve à sua impactante trilha.

Atravessou a época áurea da MPB como um artista consistente e respeitado pela crítica, mas que nunca obteve sucesso popular à altura do seu talento. E nunca se saiu bem nos festivais, embora apresentasse trabalhos inovadores como o uso de versos concretistas em "Girassol" e "Canto do amor armado".

E se manteve sempre corajoso, ousando reverenciar o mártir guerrilheiro na canção "Che Guevara não morreu" e produzir o verdadeiro libelo contra a censura que foi "Calabouço".
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O carioca Theo de Barros é um cantor, compositor, violonista e arranjador que jamais ascendeu ao estrelato porque lhe falta carisma remotamente à altura da qualidade do seu trabalho. A vida, às vezes, é muito injusta.
Estudou violão desde os 11 anos e tinha 19 quando Alaíde Costa gravou sua "Natureza e igrejinha". Em 1963 já mostrou a que veio com seu compacto de estréia, trazendo a contundente "Vim de Santana" ("Quando a gente passa fome/ fica homem/ mal acaba de aprender a andar").

Ano novo, novo clássico da MPB: "Menino das laranjas", que Geraldo Vandré gravou de imediato e Elis Regina depois. 

O ápice de sua carreira foi o 1º lugar de "Disparada", música dele e letra de Geraldo Vandré, no 2º Festival da RecordDepois, integrou o Quarteto Novo (ao lado de Airto Moreira, Heraldo do Monte, Hermeto Pascoal), conjunto instrumental que acompanhava Vandré em gravações e excursões. 

Participou de várias produções do Teatro de Arena, com destaque para a direção musical de uma das melhores peças do grupo, Arena conta Tiradentes, que incluía a enérgica canção "Espanto", gravada por Maria Odette E compôs as músicas do filme Quelé do Pajeú.

Uma de suas canções para festivais que merecia melhor sorte é esta "Oxalá".
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Tim Maia era um dos 18 filhos de um casal pobre do bairro carioca da Tijuca. Começou a compor aos oito anos de idade e aos 14 iniciou sua carreira artística, como baterista do grupo Tijucanos do Ritmo. Depois, em 1957, formou o grupo vocal Os Sputniks, com a participação, entre outros, de Roberto Carlos.

Viveu nos Estados Unidos a partir de 1959, o que se refletiria no seu estilo musical, uma mistura de samba e ritmos nordestinos com soul music e funk. Mas, teve de voltar para o Brasil em 1964, deportado por posse de maconha.

Estourou nas paradas cariocas com o LP de estréia, que levava seu nome e emplacou principalmente graças à irreverência de "Coroné Antônio Bento" e ao romantismo de "Primavera (vai chuva)" e "Azul da cor do mar".

Sua carreira foi prejudicada por problemas com as drogas e o álcool, além da insistência em divulgar a seita Universo em desencanto, que não lhe inspirou boas músicas. 

Mas, musicalidade ele tinha de sobra, daí ter legado um sem-número de canções marcantes. Eu destacaria, além das já citadas, "Cristina", "Canário do reino", "Eu amo você", "Gostava tanto de você", "Réu confesso", "Você" e esta pungente "Me dê motivo".
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Baiano de Irará, Tom Zé era visto na era dos festivais como uma espécie de primo pobre dos ídolos tropicalistas. Eu considerava isto um tanto injusto, pois naquilo a que se propunha – detonar o sistema com sátiras e deboche –, era bem melhor do que o Gilberto Gil de "A luta contra a lata", p. ex. Tão hilários quanto ele só conseguiam ser Os Mutantes, mais dados, contudo, ao humor em si, sem alvo determinado. Já Tom Zé fazia dele uma arma contra a caretice e intolerância da sociedade burguesa.
Enturmado com Caetano, Gil, Bethânia e Gal desde o início dos anos 60, participou de espetáculos da futura brigada tropicalista, como Nós, por exemplo, Nova bossa velha, velha bossa nova e Arena canta Bahia

Depois, em 1968, foi um dos artistas incluídos no LP-manifesto Tropicália ou panis et circensis, que definiu as bases do movimento desencadeado no ano anterior por Caetano e Gil, mas não em posição de destaque: foi aproveitada uma única composição sua ("Parque industrial") e ele nem sequer a interpretou sozinho...

Quando Caetano e Gil decidiram não defender a composição por eles inscrita no Festival da Record do mesmo ano, quem saiu no lucro foi Tom Zé: escolheram Gal interpretar "Diviho, maravilhoso", mas o 1º lugar na avaliação do júri especial coube a "São São Paulo, meu amor", do Tom Zé, enquanto Chico Buarque era consagrado pelo júri popular.

Acabou se distanciando do tropicalismo e sendo muito bem sucedido; contou, claro, com uma pequena ajuda do músico David Byrne, dos Talking Heads, que ouviu um LP dele por acaso, considerou-o genial e introduziu Tom Zé no mercado internacional.

A lista de canções que eu destacaria do Tom Zé não cabe neste espaço. Fiquemos apenas com a minha favorita, que relata uma situação que eu também cheguei a presenciar, na estação em que os nordestinos desembarcam na cidade de São Paulo e dela partem. 
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Nunca morri de amores pela bossa-nova de Antônio Carlos Jobim, João Gilberto e Vinícius de Moraes, pois aquela rotina preguiçosa de amor, sorriso, flor, barquinho a deslizar e garota de Ipanema a rebolar nada tinha a ver com minha realidade de filho de operário com os bolsos vazios, morando num feio bairro industrial.

Aí, uma alternativa mais politizada e menos frívola afirmou-se na minha cidade, graças aos programas e festivais da TV Record. E bem no instante em que começava a me interessar pela política!

Alinhei-me naturalmente com a vertente que Elis Regina chamava de moderna música popular brasileira, na disputa de espaço com a bossa-nova carioca. E, claro, fiquei com alguma antipatia de Vinícius de Moraes, que era tido como o inspirador do jogo sujo do grupo de lá para impedir que os artistas de cá invadissem aquela praia fechada. 

A acusação ganhou verossimilhança quando a medíocre "Saveiros" foi a finalista nacional do 1º FIC da TV Globo (1966), com "O cavaleiro", de Geraldo Vandré, sendo flagrantemente injustiçada, ao ficar apenas com o 2ª lugar. [Dois anos depois a farsa se repetiria, com a "Caminhando".]

Isto tudo posto, não serei injusto a ponto de desprezar algumas ótimas canções cujas letras foram criadas pelo poeta-diplomata, como "Berimbau", "Canto de Ossanha", "Chega de saudade", "Dia da criação", "Eu sei que vou te amar", "A felicidade", "Gente humilde", "Marcha de 4ª feira de cinzas",  "Rosa de Hiroshima" e a minha preferida, o "Samba da benção".
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Quando comecei a gostar da MPB, lá por 1966, um dos poucos programas radiofônicos a ela dedicados era o Marcando bossa, na pequenina rádio Marconi.

Um jovem apresentador, com voz sumida, introduzia as canções fazendo jogos poéticos com seus versos. Tinha como bordão "pouca fala e muita música nossa". Chamava-se Walter Franco.

No final de 1968, deu uma guinada: o esteta bem comportado vestiu farda de guerrilheiro. Inscreveu no Festival Universitário da TV Tupi uma louvação a Che Guevara, "Não se queima um sonho", que Geraldo Vandré interpretou. 

Em 1972, nova guinada: no VII FIC da Globo apresentou "Cabeça", uma algazarra de música progressiva à Frank Zappa, com várias vozes dizendo ao mesmo tempo, mas desemparelhadas, a frase "O que é que você tem nessa cabeça, irmão? Saiba que ela pode explodir ou não!", além de variações tipo "Cabeça explode! Cabeça explode!".

Foi nesta linha o LP de estréia, Ou não, que a vanguarda amou e o resto detestou. Mas, não entendam mal: tinha muita coisa interessante, misturada com os excessos. Valia a pena ouvir.

Os seguintes foram mais na linha do misticismo hindu. Ele trocou o pátio dos loucos pela paz interior. Tanto que, enquanto era vaiado no Festival Abertura da Globo (1973), sentou no chão e jogou uma partida de dados imaginária com o maestro Júlio Medaglia.

Finalmente, num festival de 1979 da TV Tupi, ele apresentou aquele que talvez seja o melhor rock-blues brasileiro de todos os tempos: "Canalha".

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O carioca Wilson Simonal foi um dos melhores cantores brasileiros da década de 1960. Decolou para o sucesso em 1963, aos 25 anos, com "Balanço Zona Sul", uma das músicas mais características do modo ipanemense de ser. No ano seguinte, mais dois grandes êxitos: "Lobo bobo" e "Nanã".

Sua carreira não parou de crescer, graças à simpatia e ao swing que o tornavam um dos ídolos mais populares da MPB. Era, basicamente, o que os defensores de uma MPB engajada nas lutas sociais e na resistência artística à ditadura chamavam de alienado. Coerentemente, no tiroteio entre os engajados e os tropicalistas emergentes, alinhou-se com os últimos.
Antes...

Da noite para o dia virou ovelha negra, em 1971, quando estourou o escândalo que o desgraçaria para sempre: acreditando-se roubado pelo contador que despedira e lhe movia ação trabalhista, pediu a ajuda de policiais do Dops, os quais, utilizando até torturas, arrancaram do dito cujo uma confissão de desfalque.

A mulher do contador, desesperada com seu sumiço, queixou-se à polícia e a notícia se propagou. Resultado: espalhou-se o boato de que Simonal não só era dedo-duro, como havia alertado a repressão para o plano de músicos famosos que queriam aproveitar o VI FIC da TV Globo para protestarem ao vivo contra a ditadura e a censura.

As portas se fecharam para ele e sua carreira virou pó. Eu sempre suspeitei de que ele tenha sido vítima de sua ingenuidade (e também do maucaratismo que mostrou ao encomendar uma prensa no seu contador). No entanto, quem a deu foram subalternos do Dops, aparentemente em caráter particular, sem conhecimento dos superiores. Isto me parece nunca ter sido levado em conta pelos que passaram a boicotá-lo de todas as formas.

Pode-se pensar que Simonal, depois de ter sido chamado para depor certa vez por causa do que seria um detalhe subversivo num de seus shows, tenha ficado amigo desses pés-de-chinelo, até por interesse mútuo: eles poderiam servir-lhe de leões de chácara e Simonal arrumar-lhes fãzocas para farras.
...e depois.

Mas, ele próprio deu depoimento confessando que era informante; é no que se baseou a estigmatização. 

E se, contudo, não passasse de uma versão criada para justificar o serviço escuso que os investigadores lhe haviam prestado? Afinal, estavam ameaçados de perder o emprego e até a liberdade.

À distância, não dá para condená-lo nem absolvê-lo. Apenas estranho que se tenha aceitado como incontestável uma versão tão cheia de furos; que ele tenha levado a fama de delatar o plano dos músicos por mera suposição, sem evidência nenhuma; e por aí vai. Havia paranoias demais no ar durante os anos de chumbo e se cometiam grandes injustiças.

Não gosto de pensar que ele possa ter sofrido toda discriminação que sofreu sem ter culpas maiores além das de ter escolhido mal os companheiros de orgias e lhes haver pedido um favor escroto... 

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