quarta-feira, 1 de março de 2017

1981: O QUEEN INAUGURA A ERA DOS MEGA-ESPETÁCULOS ROQUEIROS NO BRASIL. ADEUS, INCONFORMISMO!

O Pink Floyd destacou a semelhança de mega-espetáculos de rock com celebrações nazistas 
Quando foi que, no Brasil, o rock começou a deixar de lado o inconformismo para se tornar mega-espetáculo inofensivo (com um quê das imponentes festividades nazistas da década de 1930)?

O melhor divisor de águas talvez seja a apresentação do Queen no estádio do Morumbi, em março de 1981. Foi a primeira vez que cá vimos um conjunto exibir-se em campo de futebol, com telão, fumaças, luzes e toda a parafernália infernal.

Na década anterior, os ideais e posturas da contracultura ainda inspiravam alguns roqueiros viscerais, como Neil Young, Eric Burdon e Joe Cocker. E os produtos típicos da indústria cultural eram pop stars como Peter Frampton e Paul McCartney.

Foi em 1979 que comecei a escrever sobre rock na editora Imprima. Os sócios-proprietários surpreenderam-se com a receptividade dos meus textos: o gênero estava em baixa era pouco executado nas rádios, mas demonstrou possuir insuspeitados contingentes de fãs.

Eu sabia disto, via-os sempre na Galeria do Rock, centro velho de São Paulo, cujos sebos  frequentava. Neles ainda subsistia o espírito de antagonismo com relação aos caretas  do sistema, a mentalidade de tribo minoritária e discriminada.

Passei a ter duas páginas fixas, depois quatro, no carro-chefe da editora, a revista Música. E se lançaram novas publicações, que eu criei e editava: Internacional ExtraRock StarsRock ShowRock Passion.

Quando soube da vinda do Queen, escrevi a obrigatória matéria de apresentação. Lá pelas tantas, informei o óbvio: que o nome do conjunto se devia a queen ser uma gíria para bicha. Sem preconceito, apenas um dado informativo a mais.

O fã-clube ignorava e escreveu cartas raivosas à editora, acusando-me de difamador (!). Pediu que visitasse sua sede para discutir o assunto.

Como não era bobo nem nada, impus a condição de que a meninada viesse à editora. Aí, claro, o papo transcorreu civilizadamente, na sala de reuniões.

Depois, ao lado de dezenas de convidados da Emi-Odeon, assisti à apresentação de Fred Mercury & cia. no gramado do Morumbi. As novidades me surpreenderam, mas a descaracterização não me escapou. Percebi que a emoção cedia lugar à coreografia bem ensaiada. 

Deduzi que não haveria mais interação entre palco e platéia, mas sim veneração dos astros.

Que nunca se repetiriam temporadas como aquela lendária do Cream no Fillmore West, em 1967, quando Eric Clapton, Jack Bruce e Ginger Baker, dia após dia, apresentaram de forma diferente as mesmas músicas, de forma que a duração nunca era idêntica. Que improvisos magníficos!
Tony Osanah na fase roqueira, acompanhando Raul Seixas. 

Também me lembrei dos idos de 1973, quando o rock estava tão por baixo que só tinha espaço num dia morto como 2ª feira, no Teatro Oficina. Eu ia quase sempre.

Certa noite choveu, o público era pequeno e a aparelhagem de som estava dando defeito. Um fim de feira.

Então, enquanto os artistas se apresentavam, havia um montão de bicões dando palpites no fundo do palco, enquanto os técnicos tentavam consertar o equipamento; a falação atrapalhava os números. o espetáculo parava 10 minutos, continuava, parava de novo. Algumas atrações desistiam e se mandavam, outras cumpria a obrigação mas só batendo ponto, com o enfado estampado no rosto.

Aí entrou o argentino Tony Osanah (que integrara os Beat Boys ao acompanharem Caetano Veloso em "Alegria, alegria", mas  depois acabaria redescobrindo suas raíces de america), só com a guitarra e o pedal para controlar sintetizadores.

A performance foi furiosa, no melhor estilo Jimi Hendrix. Ao final, trovejou: 
"Eu poderia estar ganhando mais grana nas boates, mas vim aqui atrás de um bom astral. E o que encontrei? A mesma merda. Som, a gente tira na raça, basta ter tesão!". 
Típico texto meu daqueles tempos
Atirou a guitarra no chão e foi embora batendo portas.
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DOMESTICAÇÃO
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O certo é que, naquela noite de 35 anos atrás no Morumbi, ficou claro para mim que o sistema voltaria a apropriar-se do rock. 

[Isto já acontecera nos anos 50, quando a indústria cultural tirou espaço dos pioneiros rebeldes e passou a apostar alto em músicos bem comportados, que não assustassem as famílias conservadoras atrapalhando os negócios, como Pat Boone, Neil Sedaka, Paul Anka e Connie Francis.] 

E eu, que mantivera a chama roqueira acesa em anos de vacas magras, passei a me sentir cada vez mais um estranho no ninho, cada vez mais entediado com as matérias cada vez mais consumistas que era obrigado a escrever e/ou editar.

Aí, em dezembro de 1984, deixei a editora Imprima e parti pra outra, sem alegria e sem fantasia, aposentando definitivamente o crítico de rock André Mauro, o último dos independentes, que permaneceu alinhado com a contracultura quando ninguém mais o era, de saudosa memória para uns poucos e envelhecidos fãs que até hoje o citam nas redes sociais.
Os novos e maus tempos chegaram com este show do Queen no Morumbi 

Um comentário:

Paulo Falcão disse...

Gostei do artigo. Concordo que a rebeldia virou produto, mas mesmo assim curti muito o último show do Black Sabbath no Morumbi, ao lado de meus três filhos. Ok, foi um "espetáculo família", mas o som estava ótimo, a banda totalmente profissional e a energia da platéia estava lá no alto. Não sei se preferiria o Ozzi bêbado e o som todo errado.

PS - Eu tinha 14 para 15 anos quando o Queen lançou o disco A Night at the Opera, que estourou no Brasil. Estudava no colégio Marista de Londrina. E todos nós contávamos sobre o nome da banda ser uma gíria para Bicha, sobre o Freddie Mercury ser uma bichona. E todos nós adoramos o disco! Achei muito louca a ideia do fã clube ignorar o que sabíamos lá no interior do Paraná.

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