domingo, 12 de fevereiro de 2017

O POLITICAMENTE CORRETO É UM AUTÊNTICO PÉ NO SACO!

Picaretagem? Não. Pior ainda!
Caiu-me na mão uma nova edição brasileira da conhecidíssima novela policial Ten little niggers, escrita em 1939 por Agatha Christie e aqui lançada como O caso dos dez negrinhos. Só que o título foi alterado para E não sobrou nenhum.

Pensei tratar-se daquela picaretagem muito frequente no mercado de VHS e DVD, de rebatizar-se um filme para vender o mesmo peixe uma segunda e até terceira vez aos incautos.

Folheando-o, contudo, logo no terceiro parágrafo encontrei o local dos crimes sendo chamado de Ilha do Soldado, ao invés de Ilha do Negro.

Também reparei que os versinhos infantis nos quais o assassino se inspira para matar suas dez vítimas não mais se referiam a dez indiozinhos, conforme a velha cantiga folclórica inglesa, mas sim a dez soldadinhos!

Uma rápida pesquisa na internet esclareceu tudo. A explicação está num press-release da Livraria Saraiva, de quando lançou a edição de bolso com o título e o texto emasculados:
"O culpado não é o mordomo, mas um personagem ainda mais cheio de normas, conhecido pelo codinome de 'o politicamente-correto'. Pois foi ele que levou os agentes literários da grande dama inglesa a proporem a mudança de título de 'O caso dos dez negrinhos' (Ten little niggers), o livro mais vendido de Agatha Christie em todo o mundo, e adaptado para o cinema por René Clair. A solução salomônica foi, então, destacar o novo título, retirado [do verso final] de uma canção folclórica inglesa, e avisar na capa que o livro é uma nova versão daquele que foi consagrado pelo público brasileiro..."
Nem este cuidado a Editora Globo teve ao reeditá-lo em formato normal. Tornou-se E não sobrou nenhum, e fim de papo! Quanto às pessoas atraídas para serem assassinadas, não eram mais nem negrinhos nem indiozinhos, mas sim soldadinhos...

Fiquei pasmo, pois nada havia de pejorativo para os negros no fato de a ilha chamar-se do Negro; nem eram prejudiciais à imagem dos índios os versos folclóricos, como todos podem constatar:

Dez indiozinhos vão jantar enquanto não chove;
um deles se engasgou e então ficaram nove.

Nove indiozinhos sem dormir: não é biscoito! 
Um deles cai no sono, e então ficaram oito. 
Antes havia, ao menos, esta ressalva.

Oito indiozinhos vão a Devon de charrete;
um não quis mais voltar, e então ficaram sete.

Sete indiozinhos vão rachar lenha, mas eis 
que um deles se corta, e então ficaram seis. 

Seis indiozinhos de uma colmeia fazem brinco; 
a um pica uma abelha, e então ficaram cinco. 

Cinco indiozinhos no foro, a tomar os ares; 
um ali foi julgado, e então ficaram dois pares. 

Quatro indiozinhos no mar; a um tragou de vez 
o arenque defumado, e então ficaram três. 

Três indiozinhos passeando no Zoo. 
E depois? O urso abraçou um, e então ficaram dois. 

Dois indiozinhos brincando ao sol, sem medo algum;
um deles se queimou, e então ficou só um. 

Uindiozinhos aqui está a sós, apenas um; 
ele então se enforcou, e não sobrou nenhum.

Foi de um ridículo atroz alguns tolos pernósticos dos EUA terem feito tempestade em copo d'água por causa desses versos bobinhos, feitos para rimarem e não para significarem o que quer que seja. 

E foi uma traição à literatura a conivência dos agentes mercenários com o estupro do texto original da obra (e até do folclore britânico...)!

Repito o que já escrevi quando os patrulheiros cricris foram procurar pelo em ovo num clássico da literatura infanto-juvenil de Monteiro Lobato,  o maior autor brasileiro do gênero: nosso problema é e sempre será o de transformarmos o mundo, não o de maquilarmos as palavras com que nos referimos às mazelas do mundo. 

A lepra tem de ser combatida com medicamentos, de nada adianta utilizarmos o eufemismo hanseníano para designar quem o povo conhece, sem conotação negativa, como leproso (o termo que se tornou pejorativo é lazarento). 
O racismo existirá enquanto vivermos numa sociedade que coloca os homens uns contra os outros, numa canibalesca competição que só serve para perpetuar a desigualdade e a exploração; temos é de acabar com o capitalismo, não ficar deletando negro e preto, para substituir por afro-americano

Mas, claro, fazer o necessário é muito mais difícil do que fazer marola com irrelevâncias.

Repito, também, que quem tenta proibir/estigmatizar obras de arte, ou batalha para que sejam censorialmente modificadas em função de tais ninharias, tem índole inquisitorial. Embora não o admita nem para si mesmo, é herdeiro de Torquemada.
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