domingo, 3 de julho de 2016

A MERITOCRACIA MERCADOLÓGICA COMO FORMA DE ANIQUILAMENTO DO SER

Por Dalton Rosado
"Cada mercadoria determinada luta para si própria, não 
pode reconhecer as outras, pretende impor-se em toda 
a parte como se fosse a única. O espetáculo é, então, 
o canto épico deste afrontamento, que a queda de 
nenhuma Ílion poderia concluir. O espetáculo 
não canta os homens e as suas armas, mas 
as mercadorias e as suas paixões." 
(Guy Debord, A sociedade do espetáculo) 
O processo de competitividade da vida mercantil, no qual a meritocracia passou a ser sinônimo de seleção social absoluta em detrimento de valores humanos como solidariedade, afeto, respeito ao outro, etc., é algo inerente à lógica segregacionista de uma relação social na qual o sujeito automático da forma-valor (Marx) escolhe quem, do ponto de vista material, vive bem (uns poucos), vive mal ou morre (os muitos). 

O surreal é que os humanos não competem entre si diretamente, mas através de uma relação social reificada, fundada na produção de valor abstrato (a riqueza abstrata representada pelo dinheiro) que determina os valores sociais e os elege como virtuosos ou não. 

A perfeição biológica da natureza, que dota os seres humanos de capacidades variadas e deveria equilibrar naturalmente o fazer social, é substituída pela força da mão invisível do mercado, que estabelece aquilo que é útil para a reprodução do valor e, portanto, deve ser considerado socialmente virtuoso, e que o resto são perfumarias destituídas de sentido prático e, portanto, descartáveis. Noutras palavras, é o mercado quem decide o que é bom e o que é mau, sob a ótica fetichista da reprodução autotélica do valor. 

Neste sentido, a lógica das relações mercantis tanto endeusam exageradamente algumas determinadas virtudes objetivas (como o esplêndido futebol de um Messi), como relegarão ao ostracismo essas mesmas virtudes quando deixarem de ser competitivas e geradoras de lucro (como a velhice do mesmo Messi quando já não puder jogar futebol). 

Tal artificialismo é que leva muitas pessoas famosas que são transformadas em mercadorias sem compreenderem o caráter impessoal, momentaneamente fugaz e oportunista das suas atividades artísticas, esportivas, etc., a entrarem em parafuso existencial quando caem no esquecimento. É que as relações interpessoais mercantis são baseadas num espetáculo de coisas, e não nas virtudes humanas das pessoas que a fazem; é o objeto de suas artes, enquanto útil à lógica mercantil, o que conta, e não qualquer traço de humanidade existente nos seus protagonistas.   

Uma das principais características das sociedades mercantis é eliminação crescente de virtudes humanas que não tenham o condão de gerar valor mercantil, ou seja, riqueza abstrata representada pelo dinheiro e mercadorias. Vejamos p. ex., o significado disso no campo das artes:
a) um grande compositor, cantor ou músico que não consiga entrar no mercado fonográfico e ganhar dinheiro é desclassificado como incompetente ou artista de segunda categoria, razão pela qual, muitos vendem sua alma ao diabo mercantil e se limitam a ma produção artística convergente com aquilo que o próprio mercado dita como bom, moldando negativamente o gosto popular e promovendo uma relação de causa e feito igualmente negativa. Produz-se o que não presta artisticamente porque o consumo está adequado ao que não presta, e o que não presta ganha terreno porque se subordina a uma produção igualada aos padrões de gosto o consumo mercantil. Uma interação de mau gosto patrocinada pelo mercado; 
b) outro exemplo: um profissional do jornalismo que conteste os valores mercantis terá dificuldade de exercer a sua profissão numa empresa jornalística, cujo objeto teleológico precípuo é o lucro e sua manutenção econômica, ditada pela lógica mercantil sob pena de falência, antes de ser um instrumento de informação e entretenimento (como disse o Apollo Natali, “É assim? Assim é!”; 
c) um criminoso qualquer, que ganhe dinheiro com cocaína, como Pablo Escobar, e que se apresente às populações empobrecidas pela lógica mercantil como um simulacro de Robin Hood, é tido como herói pelos beneficiados.    
O mundo, hoje, é nacionalmente globalizado, ou seja, é formado em todos os seus quadrantes por nações resultantes de um processo de mercantilização que se introduziu e se implantou pela então descoberta da poderosa força das armas de fogo, contrariando a cultura pré-capitalista vigente de até então e na qual os processos de socialização eram completamente diferentes, de cunho teocrático sacrificial, e menos letais (mas nem por isso emancipatórios ou antiescravistas). 

Na esteira desse processo de mercantilização que hoje se tornou one world, tem havido mutações sociais históricas nas quais a motivação inicial subjetiva de obtenção de recursos financeiros para fazer face à cara máquina de guerra de dominação pela força gerou o movimento autônomo do sujeito automático da forma-valor (Marx,) no qual o fim em si tautológico da multiplicação do dinheiro pela multiplicação do dinheiro se tornou independente da subjetividade governamental e passou a ser ele mesmo o senhor das ações sociais.
Pablo Escobar era o malvado favorito do povaréu colombiano

Ou seja, o sujeito automático da forma valor passou agora a subordinar a força das armas ao seu comando fetichista abstrato e insensível, tornando-se ainda mais belicoso e letal, e com objeto teleológico ainda mais negativo. Tudo passou a ser, então, avaliado como positivo ou negativo a partir da capacidade de geração de valor, ou seja, aquilo que não dá lucro e não gera dinheiro é considerado desinteressante, supérfluo ou fora da realidade. 

Como dissemos antes, virtudes como as atividades maternais de reprodução da vida; a afetividade; as atividades artísticas e esportivas não absorvidas pelo mercado; a solidariedade humana desinteressada; o saber filosófico de compreensão da natureza do comportamento humano; a generosidade e muitas outras virtudes humanas não correlacionadas com a capacidade de gerar dinheiro são alvo do desprezo social. Transformamo-nos, todos, em meros robôs desse mesmo sujeito automático que nos dá ordens; o qual se tornou uma criatura maior que o seu criador (o ser humano), e o escravizou. 

O caráter onívoro da forma-valor é, concomitantemente, abstrato e real, destruidor e autodestrutivo. Tal qual um monstro faminto, cresce até o ponto de não mais ser possível alimentá-lo e morre, mas não sem antes tentar levar de roldão todos os que o alimentaram, como agora ocorre. 

Temos de nos livrar desse monstro faminto que criamos e ao qual nos submetemos, pois só assim evitaremos a morte definitiva da virtude e da própria vida.
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A dita igualdade de oportunidades sob o capitalismo 
é o tema desta canção antológica de César Roldão Vieira

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