sábado, 13 de setembro de 2014

GAUCHE NA VIDA

"Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida."
(Drummond, Poema de sete faces)

Hoje me dei conta de que minhas duas filhas não fizeram primeira comunhão. Como é algo distante dos meus interesses, nunca havia pensado nisso.

Antigamente, pelo contrário, poucas crianças escapavam. Minha mãe, embora espírita, queria que eu fizesse. Meu pai não dava palpite nesses assuntos, dizia que "em política, futebol e religião, cada um faz suas escolhas e não vale a pena discuti-las com os outros, pois sempre acaba em briga". 

Então, fui eu que decidi. E não cedi. [Acho que nem batizado seria, se não tivessem me pegado distraído no berço...]

Não foi o espiritismo que me afastou da Igreja, foi o que meu primo Flávio contou. Ele nasceu com uma perna mais curta que a outra e precisava de cuidados médicos um tanto onerosos. Como a grana era curta, levavam-no à Santa Casa de Misericórdia.

Certa vez uma freira lhe perguntou qual sua religião e ele caiu na besteira de responder que era espírita, como os pais.

Foi o bastante para a megera fanática passar a chamá-lo de "endemoniado" e a açular as outras esposas de Deus contra o coitado. Tratavam-no a pontapés. Uma criança de quatro anos!

Eu deveria ter uns seis quando o Flávio me contou este episódio. Fiquei indignado. Desde muito cedo eu não suportava injustiças.

Então, ao entrar no grupo escolar, não hesitei em me declarar espírita e recusar-me a assistir às aulas de educação religiosa, dadas na ótica católica. Se o Flávio aguentara a barra, eu não ficaria atrás.

De uns 40, fomos só quatro os que optamos por ir para o pátio, onde tínhamos de suportar a ranzinzice de uma servente que, provavelmente, nutria preconceito contra nós. Ela nos intimava, aos berros, a ficarmos em pé, encostados numa parede, sem conversarmos.

Havia evangélicos que não se assumiram como tais por receio de se diferenciarem do rebanho. Eu, logo na primeira vez em que tal dilema se apresentou, preferi ser visto como ovelha negra do que ver a mim próprio como pusilânime.

E, em todas as situações semelhantes pelos anos adentro, continuaria sempre escolhendo ser gauche na vida.

Ou como Jards Macalé cantou, adaptando o poema de Drummond para os malucos belezas dos anos 70,  meu papel no mundo tem sido o de desafinar o coro dos contentes...

Jards Macalé inspirou-se no poema de
Drummond ao compor "Let's play that"

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