domingo, 26 de junho de 2011

BAÚ DO CELSÃO: CHE PUEBLO

“El nombre del hombre muerto 
ya no se puede decirlo, quién sabe?
Antes que o dia arrebente, 
antes que o dia arrebente
El nombre del hombre muerto, 
antes que a definitiva noite 
se espalhe em Latinoamérica
El nombre del hombre es Pueblo, 
el nombre del hombre es Pueblo”
(Capinan, Gil e Torquato)



Che - o argentino, de Steven Soderbergh, consegue um prodígio, em termos de grandes produções estadunidenses enfocando personagens revolucionários: é um filme honesto.

Claro que, precavendo-se contra as inevitáveis críticas dos direitistas, Soderbergh e o roteirista Peter Buchman evitaram manifestar simpatia ostensiva pela causa revolucionária, limitando-se a colocar na tela os episódios narrados nos diários de Che Guevara.

Então, os aspectos políticos, como o relacionamento entre a guerrilha e a oposição desarmada, são tratados de forma muito superficial, enquanto as cenas de batalhas tomam tempo demais do filme.

Um cineasta   do ramo, como Costa-Gravas, certamente aprofundaria mais os personagens e situações, ao invés de ficar no meramente descritivo. Só que Hollywood jamais bancaria um filme sobre Guevara que tivesse Costa-Gravas como diretor...

Justiça seja feita: o atual Che é extremamente mais digno do que o Che! de 1969, dirigido por Richard Fleischer, com Omar Shariff no papel principal. Caricaturas e preconceitos desta vez ficaram de fora. A guerra fria acabou, felizmente.

Chamou-me a atenção o tratamento respeitoso que Fidel Castro (interpretado pelo bom ator mexicano Demián Bichir) recebe. Ele é mostrado como líder inconteste da revolução: ao mesmo tempo o visionário que apostou numa possibilidade remotíssima de vitória, o carismático que soube contagiar os outros com seu sonho e o pragmático que tomou quase sempre as decisões corretas ao longo da campanha.

Benicio Del Toro, obviamente, é quem sustenta o filme.

A opção foi a de abarcar, nesta primeira parte do épico -- há uma segunda, Che - A Guerrilha  --, o período que vai do primeiro encontro entre Che e Fidel (1955) até a derrubada do ditador Fulgencio Batista (1959); afora isto, só existe um pequeno salto para o futuro, o pronunciamento de Guevara na ONU (1964).

Nesses quatro anos de que se ocupa o filme, o idealismo e a capacidade de enternecer-se de Guevara não se ressalta tanto nas situações propriamente ditas, como nos Diários de Motocicleta, de Walter Salles.

Aqui e ali, o roteiro cumpre esse papel, como ao mostrar Guevara fragilizado ao sofrer ataques de asma, compassivo no trato com os camponeses e solidário com um novato a ponto alfabetizá-lo nos intervalos das batalhas e caminhadas.

E há também a bela frase dos diários do Che, sobre o amor que move os revolucionários.

Mesmo assim, dependia em muito do ator  passar   ou não para os espectadores a humanidade de um herói que não foi um homem de ferro e, muito menos, o sanguinário em que parte da mídia o quer hoje transformar.

Benício conseguiu, oferecendo-nos um verdadeiro tour de force interpretativo . Seu Che é mesmo um idealista obrigado a endurecer-se para cumprir seu papel histórico, mas que não perde a ternura jamais.

Enfim, o cinema ainda continua nos devendo um filme definitivo sobre a revolução cubana. Mas, tenho a impressão de que este Che é o máximo que podemos esperar de Hollywood.

E vale para estimular o interesse das novas gerações por um dos personagens mais emblemáticos do século passado.

CULTO PERENE

É claro que muitos jovens, antes desse filme, já viam Guevara como o próprio símbolo da revolução.

Enquanto Marx, Lênin, Stalin, Trotsky, Mao e o próprio Fidel só significam algo para os politizados, o Che tem uma força simbólica indiscutivelmente maior -- e muito mais adeptos na faixa da adolescência e mocidade.

Quais os motivos de culto tão perene?

Há quem o atribua, depreciativamente, à semelhança visual entre o Che abatido e o Cristo crucificado, omitindo que as trajetórias também são semelhantes.

Ambos desdenharam os bens materiais e foram solidarizar-se com os pobres, oferecendo-lhes apoio e esperanças. Despertaram a fúria dos poderosos de seu tempo e foram por eles destruídos, terminando sua jornada com muito sofrimento.

Evidentemente, os relatos que chegaram até nós sobre Jesus Cristo não têm áreas nebulosas como aqueles episódios em que Guevara parece haver incorrido em violência excessiva.

Mas, se o Salvador disse que não vinha “trazer a paz, mas a espada”, foi Guevara quem a empunhou. E a guerra nunca inspirou os melhores sentimentos ao ser humano. Pelo contrário, desperta seus piores instintos.

Então, a luta justificada e necessária contra o tirano Fulgêncio Batista pode ter feito aflorar o Robespierre latente naquele homem afável, tão bem retratado nos Diários de Motocicleta.

Mas, contradições são inerentes a todo ser humano. Não existe o herói perfeito e impoluto, salvo em nossa imaginação.

O certo é que Guevara continuou sacrificando tudo por seu ideal de justiça social. Como Garibaldi, foi levar a chama da revolução a outro mundo, a África. E tentou outra vez na Bolívia, onde finalmente o Império o fez executar (mais um paralelo com Cristo!).

Sua vida só foi uma sucessão de fracassos (como já se alegou) para quem reduz a existência à busca do sucesso fácil, descartando valores como a solidariedade, a coerência e a dignidade.

Os que o recriminam, certamente jamais agiriam como Guevara, abrindo mão do poder e honrarias para efetuar desesperadas tentativas de romper o isolamento da revolução cubana.

Pode-se supor que, como Trotsky, ele tenha concluído que a revolução invariavelmente se deforma quando fica restrita a um só país – ainda mais uma nação pobre, atrasada e asfixiada pelo embargo comercial, como Cuba. E fez o que poucos fariam: assumiu a missão de encontrar uma saída para o impasse, nas condições mais desfavoráveis.

No mundo todo, os jovens que também lutavam contra o Império se identificaram com seus sonhos e seu martírio. Não foram uma foto e um pôster que o transformaram em mito, mas sim esse exemplo de dedicação a uma causa justa até o sacrifício extremo.

E, como os corações mais sensíveis e as mentes mais lúcidas não conseguiram vencer o sistema regido pela desigualdade e ganância, Che inspira até hoje os que não aceitam o capitalismo globalizado como o fim da História.

Daí a inutilidade dos frequentes ataques à memória do homem Ernesto Guevara -- como os lançados pela mídia reacionária, a Veja à frente, quando do 40º aniversário da morte do herói.

Jamais atingirão, contudo, o mito Che Pueblo, personificação dos ideais igualitários que os melhores seres humanos vêm acalentando através dos tempos.


Obs.: artigo escrito quando da estréia do filme, em março de 2009.

Um comentário:

Anônimo disse...

Celso, vendo a tv câmara agora, Delfin Neto falando, dentre outras coisas, disse que desconheceu, nunca passou perto, nunca havia ouvido falar da tal Operação Bandeirante...
É muita desfaçatez.

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