quarta-feira, 21 de agosto de 2024

DELFIM NETTO E SILVIO SANTOS AJUDARAM A MOLDAR O BRASIL EXCLUDENTE E BESTIALIZADO DE HOJE

 

Nesta última semana, o tobogã do inferno esteve agitado com as partidas primeiro de Delfim Netto e depois de Silvio Santos, menos conhecido por Senor Abravanel. Sobre o primeiro já escrevi um obituário à altura neste post e sobre o segundo se encarregou o Celso aqui. Gostaria apenas de fazer uma breve reflexão sobre o que significaram ambos para o projeto de país vencedor em 1964 e consolidado em 1985, com a imperfeita redemocratização da Nova República. 

A ditadura militar foi um processo histórico de consolidação do capitalismo brasileiro pautado na subordinação à burguesia dos países centrais - notadamente EUA e Europa - que garantiu a transformação do país em um exportador de capitais mediante a instalação de multinacionais e a formação de robusta dívida externa. O regime foi instalado em oposição à via nacionalista, encampada por uma parte minoritária da elite nacional, que se congregava no finado PTB, e do PCB. Cumpriu duplo papel, pois ao mesmo tempo em que consolidava o capitalismo de via colonial, também aniquilava possíveis forças revolucionárias. Nesse projeto, como é de praxe, se articularam a economia, a política e a cultura e aqui entram em cena, se interrelacionando, Delfim e Silvio. 

Derrotada a alternativa nacionalista, não apenas o projeto econômico foi soterrado, mas também o político e o cultural. Em lugar da participação popular entraram os partidos fantasmas, meras correias de transmissão dos interesses capitalistas espelhados em oposição e situação, algo primeiro encarnado nos bisonhos MDB e Arena e depois da redemocratização desdobrados em uma série de partidos que no fim não expressam nada a não ser o próprio poder burguês. Na cultura, saiu a valorização da identidade brasileira e entrou a pura importação do lixo da indústria cultura estadunidense com sua bestialização.

Os pícaros do Milagre Econômico de Delfim não eram para todos os brasileiros, lembremos. Embora a classe trabalhadora tenha tido algumas modestas melhorias, expressas na mudança de milhões de pessoas da zona rural - estagnada desde tempos imemoriais - para a urbana - que crescia acelerada -, o acesso à boa vida material estava franqueada mesmo apenas para a exígua classe média e as classes capitalistas. Como então a classe trabalhadora teria acesso aos bens de consumo brilhantes? Foi aí que entrou o Baú da Felicidade, responsável pela imensa riqueza de Silvio Santos, pois através dele era vendida a ideia ao trabalhador que seu acesso aos bens viriam se ele pagasse religiosamente um carnê para ter acesso a um sorteio. Caso não ganhasse, poderia sempre contar com o prêmio de consolação de algum apetrecho de qualidade inferior nas lojas do Baú. O auge desse esquema, digo, negócio, viria quando o Milagre goró e a hiperinflação tornou impossível aos pobres mortais bancarem as parcelas do carnê por inteiro. Silvio catapultou sua fortuna abocanhando a diferença corrigida de cada parcela. 

O segredo do Baú da Felicidade estava em um país de baixa produtividade, com superexploração da força de trabalho e com capitais escassos. A poupança existente no país era totalmente drenada para financiar as indústrias e as faraónicas obras públicas, tornando inviável financiar a compra de bens de consumo por parte da população em geral. No período neoliberal, com a dívida externa transformada em interna graças à, mas não apenas, política de juros sempre nas alturas, foi possível expandir o crédito e matar o Baú da Felicidade na raiz. Silvio ganhou no desenvolvimentismo capenga da ditadura e perdeu no financismo da redemocratização. 

Mas a chave para entender o clamor popular por um indivíduo tão repulsivo passa pelo lado político e cultural da ditadura. O milagre de Delfim com a industrialização subordinada ao imperialismo passava pela superexploração da força de trabalho só possível em um regime ditatorial, onde as massas trabalhadoras simplesmente não possuíam nenhuma voz, seja ela qual fosse, e nisso a repressão cultural também era elemento importante, fazendo-se necessário desestimular ou reprimir toda forma de atividade popular. Mas a cultura é intrínseca ao ser humano e a ditadura precisaria dar um substituto às massas. 

Casou aí de usar a mercadoria que, junto ao carro, mais impulsionava a economia: a televisão. Os televisores fizeram as vezes que tivera o Rádio na ditadura varguista, mas, ao contrário daquela, que colocava em primeiro plano a cultura nacional genuína, agora era servido às massas um pastiche de cultura emoldurada no pior produzido pelas televisões estadunidenses. Entram aí os shows de auditórios em que Silvio Santos, ao lado de Chacrinha, fariam reinado. Silvio Santos foi mais vitorioso que qualquer outro pois soube articular esse lixo televisivo com sua venda do Baú e com a ideologia do conformismo, bem ao gosto da elite brasileira, vendida às massas através das humilhações das coitadezas que iam a seu programa tentar a sorte para conseguir migalhas, seja em suas provas desumanas, seja através do infame aviãozinho. Ali o pobre era ensinado a ficar em seu lugar, esperando a boa ventura do burguês filantropo e que, se não conseguisse, era por pura e simples culpa dele próprio, pois não teria se esforçado o suficiente nas provas ou dado cotoveladas suficientes em seus colegas para apanhar uma nota de dinheiro. 

Vinda a redemocratização, Silvio e Delfim saíram vencedores. Os dois triunfaram não apenas porque continuaram homens relevantes, adorados e ciceroneados pelo poder e pelo povo, mas também porque o modelo de sociedade, excludente e bestial, que trabalhavam para implantar, venceu. O Brasil da idiotice, da miséria e da superexploração está aí, nas telas e nas ruas. (por David Coelho)  



3 comentários:

Neves disse...

A extrema-direita brasileira. Bolsonaro e o enxame de abelhas
https://www.ihu.unisinos.br/642703-a-extrema-direita-brasileira-bolsonaro-e-o-enxame-de-abelhas?utm_campaign=newsletter_ihu__22-08-2024&utm_medium=email&utm_source=RD+Station

Mas só agora??????
Alunos da FFLCH-USP mortos pela ditadura militar serão diplomados
https://www.ihu.unisinos.br/642655-alunos-da-fflch-mortos-pela-ditadura-militar-serao-diplomados?utm_campaign=newsletter_ihu__22-08-2024&utm_medium=email&utm_source=RD+Station

Neves disse...

https://www.ihu.unisinos.br/642723-continuamos-na-mesma-sociedade-escravocrata-de-antes-com-roupagens-mais-modernas-entrevista-especial-com-jesse-de-souza?utm_campaign=newsletter_ihu__23-08-2024&utm_medium=email&utm_source=RD+Station

Neves disse...

em tempo...Nicolau II (com faixa de Miss), ladeado por Mortícia
https://imagenes.elpais.com/resizer/v2/ZZVO6MRY2NFYHKV7CLGPFQMESY.jpg?auth=1bf4f63887376e4314425c2adc1c119ddcda863d6899b7238d2730fe029b3633&width=828&height=466&smart=true

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