terça-feira, 13 de agosto de 2024

A EROSÃO CAPITALISTA E A FALSA DICOTOMIA ECONÔMICA

 A relação social sob a forma-valor consiste na sua mediação pelo critério de se atribuir a objetos inanimados, transformados em mercadorias servíveis ao consumo, uma valoração econômica medida pelo tempo de trabalho abstrato - outra mercadoria - usado para a fabricação de produtos tangíveis ou serviços.  

Valor, portanto, é a transformação do tempo de trabalho abstrato em um padrão monetário qualquer - ou mesmo numa mercadoria eleita para servir de moeda, como no início do escambo - medido e somado na produção de outra mercadoria.  

É a apropriação indébita pelo capital do tempo de trabalho abstrato aquilo que permite a acumulação da riqueza abstrata, que Marx chamou de extração de mais-valia. Portanto, não há que se glorificar o trabalho abstrato e nem o trabalhador explorado por esse mecanismo escravizador, mas condenarmos todas essas categorias capitalistas à superação como forma de se eliminar o mecanismo fundamental do capital.   

No mundo capitalista, petróleo ou diamantes, ou quaisquer outras substâncias, até mesmo um calcáreo abundante, uma vez detectados como existentes na natureza, enquanto não extraídas pelo trabalho abstrato e destinadas ao mercado, são apenas riquezas materiais com potencial de se transformarem em riquezas abstratas quando, e se, forem aptas a serem levadas ao mercado e por este absorvidas.   

Tal circunstância, como vimos, qual seja o trabalho abstrato usado na fabricação mercantil, hipostasia ou incorpora aos objetos transformados em mercadorias uma mensuração abstrata quantitativa numérica por um padrão monetário qualquer representativo de valor - ou devia ser, porque hoje o mundo capitalista em colapso gira com moedas fiduciárias dissociadas do valor denunciando a iminência da hora da verdade e sua hecatombe social.   

A escassez ou abundância das mercadorias no mercado diante das dimensões dos seus usos, definem, sob a regra capitalista denominada “lei da oferta e da procura”, o preço de cada uma delas. Portanto, valor, tempo de trabalho abstrato, é categoria capitalista diferente de preço, que é categoria capitalista derivada do seu fluxo de comercialização no mercado, esta última como instância e categoria capitalista conhecida como o altar do sacrifício humano onde se materializa todo o processo de exploração do capital. 

Não há como se conviver com o mercado e suas mercadorias e se considerar como não capitalista qualquer sociedade onde essas categorias capitalistas existam; é por isso que a China jamais foi comunista, e nem tendente a sê-lo, mas apenas uma forma política diferente do capitalismo liberal burguês republicano.   

A relação social capitalista nas sociedades mundo afora e seus caráteres se definem como tal pelo modo de produção que lhes são imanentes, como dizia corretamente Karl Marx. Se se produz mercadorias como critério de relação social, a sociedade que assim procede é capitalista.  

Sob o critério da produção de mercadorias, portanto, de valor advindo do trabalho abstrato por ele remunerado e de quantitativo de valor destas mesmas mercadorias, podemos afirmar que em todos os poros das sociedades modernas, independentemente das formas políticas existentes na face da terra, somente existem sociedades capitalistas.  

Tal definição abrange todos os poros das sociedades mundo afora, que vão desde a Coréia do Norte à Cuba; da Rússia à China; dos Estados Unidos à Alemanha; da Inglaterra à França; de Portugal à Espanha; da Nicarágua à Venezuela; da Arábia Saudita à África do Sul, etc. 

É aí que reside o problema do fracasso dos modelos políticos adotados e vigentes mediante critérios de produção que têm como base o trabalho abstrato extrator de mais-valia, que como disse - corretamente, cinicamente, acriticamente  e sem o menor pejo, o economista burguês Adam Smith há mais de 200 anos, “onde há grande propriedade, há grande desigualdade. Para um muito rico, há, no mínimo, quinhentos pobres, e a riqueza de poucos presume da indigência de muitos”.  

A apropriação da riqueza produzida pelo trabalho abstrato, primeira célula componente da forma do valor, e aquela que viabiliza a apropriação e acumulação autotélica pelo próprio capital de parte da riqueza socialmente produzida, faz com que o sistema produtor de mercadorias, seja ele politicamente estatista ou liberal, obedeça à lógica necessariamente cumulativa de um processo de reinvestimento de capital, ou seja, de acumulação de  si mesmo constante e crescente, ad infinitum, sem capacidade de sua distribuição equitativa, deixando um rastro de pobreza e iniquidades que ora se agravam pelas contradições que são próprias à sua equação irresolúvel. 

A doxa socialista entendeu, equivocadamente - ou não quis entender -  que poderia repartir o bolo da riqueza abstrata socialmente produzida a partir do estado proprietário dos meios de produção e extrator de mais-valia, sem compreender a lógica funcional cumulativamente excludente e escravista de um modo de produção que dá ordens ditatoriais ao próprio estado e seus eventuais governantes. 

A esquerda heroica, bem-intencionada e com propósitos revolucionários, jamais compreendeu a força ditatorial das categorias capitalistas no interior dos países socialistas, ditos proletários e proprietários dos meios de produção e sua disfuncionalidade para os objetivos pretensamente anticapitalistas que supostamente existiriam a partir dos seus comandos políticos - Maduro, por exemplo, se jacta de ter sido motorista de ônibus, trabalhador, como se isso lhe conferisse isenção de culpas, sem desconfiar que trabalhador e trabalho jogam água no moinho capitalista.  

Algo assim como se querer que um invólucro maior caiba num recipiente menor. A consequência de tal incompreensão criou comportamentos inadmissíveis como a perseguição a quem ousasse questionar determinadas práticas flagrantemente impopulares, admitidas como se fossem males-necessários aos pretensos e libertadores objetivos maiores a serem conquistados, e que de concessões em concessões acabaram por desembocar na economia liberal de mercado capitalista sem um tiro sequer.  

Aprofundar estudos sob a negatividade da forma-valor é tema historicamente proibido na esquerda. Exemplos de tais posturas anticientíficas e intolerantes para com a análise e combate anticapitalista, vêm de longe, e rendeu a economistas marxistas muitas perseguições, como é o caso de Isaak Rubin, autor do importante livro A teoria marxista do valor, de 1923, alvo da perseguição e condenação à morte nos expurgos stalinistas de 1937.  


É que poder político vertical combina com o poder econômico induzido pela produção de mercadorias. O valor é o deus das relações sociais de produção de mercadorias que necessitam de poderes políticos que lhe sirvam quaisquer que sejam as suas formas; o valor abstrato e sua lógica socialmente materializada é quem governa os governantes.  

Uma relação social baseada num modo de produção imune à lógica do valor, por assim ser, estabelece controles de base e estímulos mais diretos da produção social coletiva de bens necessários ao consumo por não ter a hierarquização vertical política e econômica própria a uma relação social monetizada na qual são números abstratos que comandam a vida real, material, e fogem do controle de quem produz mercadorias onde impera regras próprias absolutistas.  

A escravização direta imperial, e mesmo feudal-monárquica de antes, exigia um Faraó ou um monarca absolutista; a república, forma jurídica derivada das relações sociais capitalistas, substituiu o monarca de antes por um deus abstrato, o valor que gera capital, tipo de governante absolutista abstrato que manipula a institucionalidade descentralizada em poderes executivo, legislativo e judiciário e lhe servirem obedientemente.  

É nesse sentido que a forma jurídica estatal, assentada sobre critério de produção de mercadorias e, portanto, propiciadora da acumulação da mercadoria valor-dinheiro que se transforma em capital, qualquer que seja ela, de maior ou menor conteúdo humanista, guardam dessemelhanças políticas de base como espécies de um mesmo gênero político, mas sob uma mesma identidade econômica que se caracteriza como falsa dicotomia quando se propõe como modelo político de antítese do capitalismo liberal do laissez faire, laissez passer, le monde va de lui-même   ("deixe fazer, deixe passar, o mundo funciona por si mesmo", lema liberal).  

Tal fato promove maiores convergências do que divergências substantivas no campo político, sejam elas entre um Trump e um Joe Biden; entre uma Corina Machado e um Nicolás Maduro; entre um Javier Milei e um Alberto Fernandez, que apenas se dessemelham nas definições de prioridades governamentais dentro daquilo que lhes é possível se dessemelhar, mas sem jamais desobedecer as regras impositivas da administração das finanças estatais sob pena de efeitos colaterais econômicos graves, dependentes que são da produção de valor através das mercadorias.  

Entretanto, quando o capital em crise disputa espaço entre nações que se sentem atingidas economicamente, há sempre um comando belicista do interesse do capital que propicia as guerras político-econômicas como agora vivemos, e que nos mostra um mundo conflagrado - ainda hoje as ameaças de uma escalada no mundo árabe-judeu; na União Europeia e Rússia por conta da invasão da Ucrânia; e até a cobiça pelas ricas terras da Guiana, em Essequibo, entre a Venezuela e o império britânico.  

O capital é uma guerra de concorrência de mercado entre desiguais econômicos protetorados pelas nações que, não raro, derivam para uma guerra bélica na qual morrem peões inocentes, patrióticos ou não.  

Portanto, vale dizer que não interessa quem ganhou ou perdeu as eleições venezuelanas; qualquer que seja o resultado das eleições de lá havidas em 3 de agosto o seu povo vai sair derrotado, até que ele mesmo tome seu destino nas próprias mãos e sob critérios emancipatórios de vida social fora da forma valor.  (por Dalton Rosado)

2 comentários:

Unknown disse...

Todo mundo sonha com a liberdade...e as prisões nos estados unidos? Maior população carcerária absoluta e relativa/ proporcional do mundo??

Anônimo disse...

***
Grande Dalton!
Seu texto recordou-me um semelhante de Rosa de Luxemburgo no qual aprendi a respeito de mais-valia.
Saudade das aulas de economia.
*
Doxa, como sabemos, é opinião.
E opinião qualquer um tem e, as vezes, o peso da opinião de alguns se impõe pela violência sobre a maravilhosa e justa Episteme.
Assim, deixemos de doxa e partamos para desvelar os nossos olhos até chegar a verdade.
A verdade nunca estará velada o que a vela do nosso entendimento é doxa!
*
De fato, o conceito de oferta e demanda não deveria ser apresentado como Lei, posto que Lei deve ser concisa e clara.
Assim, melhor seria dizer que existe a Lei dos Mínimo.
Justus asseverou, e provou com evidências que: "o sucesso de um organismo em um ambiente depende de que nenhum fator de sobrevivência exceda seu limite de tolerância".
*
Se um local tem recursos abundantes, mas não existe moralidade pública e nem privada, é justamente essa ausência de ética que limita o crescimento e o bem estar das populações que o habitam.
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E sim, o valor não é preço, mas é estruturante para uma sociedade feliz.
Veja-se as ineficiências causadas pela mediação social pela forma-valor e a disfuncionalidades geradas por governos expressão dessa mediação e entendemos perfeitamente como poderemos melhorar.
Isso sim, seria revolucionário.
E está acontecendo, não em Pindorama, onde, como falou o Celso, ainda prevalece a economia feudal em alguns, se não na maioria, do território.
***
Deixa doxa pra lá!
*
SF
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