sábado, 15 de outubro de 2022

CEDO OU TARDE, A FORÇA E A RIQUEZA DA NOSSA CULTURA INUNDARÃO O PAÍS

julián fuks
SOBRE O ÓDIO À CULTURA, UMA FRATURA EXPOSTA
Num país dividido, veríamos uma cultura se cindindo em grupos antagônicos, veríamos artistas, cineastas e escritores assumindo polos opostos e divergindo uns dos outros, discutindo ao infinito suas visões conflitantes. Mas este não é um país dividido, é um país fraturado. 

E, num país fraturado, a cultura se posta quase inteira de um lado; a cultura se une, decidida a defender o que resta de democracia, de humanismo, de sensibilidade. 

Do outro lado quase não sobram artistas, e o que se cria é uma ruidosa vociferação contra a cultura, contra a arte, como se ela própria fosse o mal a ser eliminado. 

A cada dia a fratura se agrava, num ciclo interminável: mais a arte é atacada, mais os artistas se posicionam, mais passam a ser execrados por tantos daqueles que alguma vez os admiraram. 

E porque esses tantos já não os entendem, porque se afastaram de qualquer apreço pela arte, pelo cinema, pela literatura, passam a julgá-las atividades tolas e fúteis, ocupações parasitárias. 

Aos seus olhos tão turvos, os artistas se convertem em mercenários, em sujeitos gananciosos que nada defendem por princípio, que não observam o mundo e nem o querem transformar, que só desejam garantir seu quinhão orçamentário num governo futuro.  

Contra a resistência da arte, o que esses propõem é uma desistência da cultura.

Por mais violento e lamentável que seja esse argumento, talvez convenha observá-lo em algum detalhe. Há algo de contraditório nessa sanha de abater o que seria inútil e frívolo, o que não passaria de desperdício de energia sem função social, expressão de uma improdutividade. 

Por outras atividades tão improdutivas quanto a arte, ainda segundo essa lógica estereotipada, esses sujeitos não costumam mostrar a mesma antipatia: empolgam-se com os esportes, exaltam a religião, incentivam o entretenimento em suas formas mais banais. 

A arte não lhes provoca desprezo, como eles querem alegar. O que ela provoca é medo e ansiedade: medo diante do desconhecido, ansiedade diante daquilo que pode ser poderoso demais, perturbador demais, aquilo que pode alterar a ordem que eles acham seu dever preservar. 

Quem acusa a inutilidade da arte, nota-se, o que teme realmente é sua ampla e incontível utilidade, sua eficácia em transformar mentes e imaginar um mundo novo, uma nova sociedade. 

Foi num contexto de questionamento de preconceitos e dogmas, foi no momento em que a arte começou a se fazer mais diversa e a erguer sua voz contra o racismo, o machismo, a homofobia, contra toda uma gama de desigualdades históricas, foi nesse exato momento que o ódio à cultura recrudesceu e se fez selvagem. 

O ódio à cultura nada tem de centrado ou sensato, nada tem de afeito à produtividade: é apenas uma voz desesperada querendo calar outras vozes, querendo retornar a um silêncio feito de privilégio, discriminação e exploração desumana. 

De inúmeras maneiras a cultura tem sido atacada nesses últimos anos, e seria pouco razoável dizer que ela não sofre, que não padece as consequências severas de tanto ódio. 

Como outros elementos centrais da nossa sociedade, como a educação, a ciência, como a própria terra que habitamos e que não cessou de queimar, a cultura tem definhado sob os desmandos programáticos de um governo que fez da destruição o seu projeto – isso já se disse demais. 

Mas se enganam, e se enganarão sempre, os que pensam que podem sufocá-la, que podem acabar com algo tão essencial à existência. Algo que se confunde com a própria concepção do humano, e que tão bem se inscreve na identidade brasileira. 

Não há triunfo possível no ódio à cultura, a não ser a crescente ignorância dos que se deixam tomar por ele, sua alienação cada vez maior em relação a um mundo que não deixará de se transformar. O ódio à cultura é um muro de contenção já crivado de infinitas rachaduras, prestes a colapsar. 

Quando isso acontecer, cedo ou tarde, não teremos mais a fratura exposta a nos atravessar, e o país se deixará inundar por fim pela força e pela riqueza de sua cultura. (por Julián Fuks)
.
T
OQUE DO EDITOR 
Escritor e crítico literário brasileiro, filho de pais argentinos, Julián Fuks andou recebendo ameaças de morte do gado bolsonarista durante as palhaçadas do último 7 de setembro, por conta do seu artigo Precisa-se de um terrorista capaz de um ato sutil que transforme a História (leia-o aqui). 

Nunca levei a sério tais intimidações. Quando as recebi (principalmente ao defender a liberdade de Cesare Battisti em 2008/2011), não perdi um segundo sequer de sono, não me queixei às autoridades nem as divulguei. Quem quer realmente matar, vem e tenta, não dá aviso prévio.

Mas Fuks escreve bem, embora repita o que já se dizia há mais de meio século (p. ex., em O fim da utopia, do Marcuse, 1967): a arte eventualmente embute o projeto de uma nova forma de organização da sociedade, capaz de concretizar os sonhos milenares de liberdade e justiça social, daí ter sido sempre tão perseguida pelos que querem eternizar a dominação vigente naquele momento.

Para quem não viveu a primavera brasileira de 1968 nem foi por ela tocado, vale muito a pena ler este artigo. (por Celso Lungaretti)

Nenhum comentário:

Related Posts with Thumbnails