quarta-feira, 31 de agosto de 2022

GORBACHEV, O STALINISTA ESTATIZANTE QUE VIROU STALINISTA DE MERCADO

Morto nesta terça (30) aos 91 anos, o ex-líder soviético Michael Gorbachev foi a face final de um fracasso histórico, o de superação do capitalismo pela revolução de 1917.

Após a Comuna de Paris, a revolução soviética se constituiu no maior e mais ousado empreendimento da classe trabalhadora na tentativa de superar o pesadelo burguês, dando fim à exploração do ser humano pelo ser humano. 

Foi iniciada no momento em que a própria sociedade burguesa declinava irremediavelmente com os horrores da 1ª Guerra Mundial e toda crise subsequente.
 
Desde a segunda metade do século 19 a Rússia desenvolvia o seu próprio capitalismo, pretendendo pelo menos reduzir seu considerável atraso em relação às nações mais avançadas do ocidente. 

De um país que se conservava em grande parte medieval, onde até a década de 1860 o trabalho era fundamentalmente servil, a terra dos czares tentava alçar-se para uma sociedade moderna, com indústrias e até mesmo com uma incipiente democracia liberal. 

O chicote do czarismo, contudo, estalava forte e já na revolução de 1905 o povo teve a percepção clara de que a tal democracia czarista era mera roupagem para – literalmente – inglês ver. 

Hoje tenta-se reabilitar os Romanov, a casta dos imperadores russos, mas na realidade eram déspostas absurdamente cruéis. Sobre isso, basta lembrar a experiência de Dostoievski que, condenado à morte, chegou a ser perfilado à frente do batalhão de fuzilamento antes de Nicolau I comutar a pena para trabalhos forçados na Sibéria. Este é apenas um exemplo do puro sadismo de tais nobres
Destino insólito: Gorbachev, após sair do poder, passou
a ser visto como herói no exterior e vilão em seu país...

Não à toa, o czarismo caiu na Rússia mais ou menos como o Império no Brasil: sem muito choro. A luta encarniçada viria mesmo entre os socialistas e a burguesia liberal, alinhada com a social-democracia. 

Terminada a grande guerra, a Rússia estava completamente destruída, pois não apenas tinha sido sugada pelo conflito mundial, mas a própria guerra civil arrasou com seus campos, suas fábricas e sua população. Era preciso reconstruir, dar um passo atrás na revolução socialista e realizar tarefas características da etapa capitalista. 

O isolamento da nova república soviética fez piorar ainda mais o quadro. A rigor, a revolução socialista morreu na Alemanha em 1919, com a vitória das forças reacionárias e da social-democracia. A partir deste momento, a atrasada Rússia ficou sozinha, sem acesso a tecnologias e instrumentos produtivos. 

O stalinismo nasce deste contexto de derrota revolucionária e de necessária reconstrução produtiva. A forma encontrada foi restaurar parcialmente o capitalismo, agora mediante a centralização estatal, e impor a mais brutal extração de mais-valia absoluta aos trabalhadores. Toda a ditadura stalinista, com seus expurgos e matanças generalizadas, veio desta lógica econômica, mostrando mais uma vez o preço terrível do progresso material. 

Assim como o desenvolvimento capitalista no ocidente europeu foi feito a partir da queima e trituração de milhões e milhões de seres humanos na Europa, Américas, África na Ásia, o capitalismo soviético teve como preço o esmagamento de milhões de indivíduos na Rússia e em países a ela submetidos. 

O contexto da guerra fria pôde melhorar as condições produtivas na URSS. Com a submissão de metade da europa e o alinhamento de outras nações na África e Ásia, o país saiu de seu isolamento anterior e até conseguiu diminuir o nível de extração da mais-valia absoluta. Houve, então, um distensionamento político e social após o falecimento de Stálin e a denúncia de seus crimes
...talvez porque a imagem que os stalinistas inconformados 
dele espalhavam fosse bem na linha deste meme...

Não significou, contudo, o fim do stalinismo, mas apenas sua mudança de patamar. Numa espécie de
abertura lenta e gradual à russa, foi permitido um alívio na dinâmica interna justamente graças à estabilização dos meios produtivos e à melhora do fluxo de riquezas e tecnologias com outros países. Os campos de trabalho forçado e as prisões arbitrárias foram trocadas por métodos mais empresariais de controle, com punições administrativas. 

De fato, o Estado funcionava enquanto um grande empresário, retirando mais-valia dos trabalhadores e a revertendo em investimentos produtivos e militares. Os burocratas do partido, civis e militares, atuavam como grandes gerentes, seguindo a lógica de expandir as forças produtivas ao máximo. 

Logo este modo de organizar a economia começou a mostrar sinais de fadiga. Claramente a extração de mais-valia absoluta batia no teto pois sua retorno na forma de investimento produtivo não fazia mais sentido:  as forças produtivas já tinham sido desenvolvidas ao máximo. A burocracia começou a criar artificialidades para cumpri o planejamento produtivo. 

Assim, p. ex., começou-se a gastar mais e mais ferro para produzir geladeiras, apenas porque era necessário atingir certa cota de produção deste material e continuar alimentando a expansão do setor metalúrgico. O sistema estava caduco. 

Não demoraram para aparecer as falhas e a velha crise do capitalismo também começou a se manifestar na União Soviética. A concentração excessiva dos esforços na implantação da infraestrutura básica do país implicou um fornecimento insuficiente de itens indispensáveis para a população. Se produzia muito aço e pouca comida, daí a crise de abastecimento ter frequentado tanto o noticiário internacional durante os estertores do regime. 
...e muitos cidadãos ainda tenham 
esperança numa volta ao comunismo.

A solução encontrada pela
nomenklatura foi avançar no processo de transformação capitalista. Se com Stálin foi introduzida a mais-valia absoluta para gerar forças produtivas, nesses novos tempos era preciso implantar a mais-valia relativa para produzir mercadorias de consumo e atender às necessidades dos indivíduos. Dito de outro modo, Stálin legara o fordismo, seus herdeiros precisavam trazer o toyotismo. 

É quando entra Gorbachev. Seu objetivo com as reformas era criar um híbrido semelhante ao que a China já estava buscando fazer: continuar o regime ditatorial, mas aprofundando o mercado capitalista. 

Para tanto, seriam feitas reformas com desestatização, abertura ao capital estrangeiro, retirada de direitos sociais e relativa liberdade política. Mas tudo isso continuando com o regime de partido único e com o poder da burocracia. Ou seja, em essência, era mais uma mudança do stalinismo, agora fundido com o neoliberalismo. 

Contudo, o falecido líder foi atropelado pelos acontecimentos. A nomenklatura, insatisfeita com a perspectiva de perder seu poder econômico e político à medida que capitalistas estrangeiros, ou mesmo russos não pertencentes aos quadros do PC, se tornassem proprietários das empresas até então estatais, decide acelerar o processo e dissolve por completo a União Soviética, se transformando ela mesma em burguesia. 

Boris Iéltisen é a figura líder deste processo e os caóticos anos vividos pela Rússia na década de 90 são o ajustamento à nova ordem capitalista, agora com uma nova classe dominante, a antiga burocracia. A estabilização do novo regime só virá a ocorrer com Putin. 

Hoje a Rússia permanece sendo uma ditadura, mas coberta de aparência de uma democracia liberal. As práticas stalinistas seguem vivas, mas apenas com um pouco mais de liberdade, dada justamente pelo modo toyotista de produção. 

No frigir dos ovos, podemos dizer que a experiência da URSS foi um longo processo de modernização capitalista, começando com uma revolução socialista fracassada e terminando com a ascensão de uma burguesia autocrata. 

O que começou com grandes esperanças para a humanidade, produzindo uma liderança da estatura de Lênin, terminou melancolicamente com um anão como Gorbachev. 
(por David Emanuel Coelho)

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