(continuação deste post)
O trabalhador assalariado substituiu o servo europeu e o escravo africano colonial por meio de uma nova e sutil escravização: a extração de mais-valia, que nada mais é do que a apropriação indébita pelo capital do tempo-valor do trabalho abstrato, assalariado.
Entretanto, o escravo da modernidade, o trabalhador, depara-se agora com um impasse que o impele à solução de um problema: já não há trabalho escravo para todos!!!
Qual a perspectiva de um pai de família desempregado, com mulher e filhos para alimentar, morar e pagar energia e água, vestir, educar (conheço alguns meninos que vi crescer próximo à minha casa, sem escola e que, em sua trágica maioria, foram mortos pelo tráfico ou estão presos), transportar-se, divertir-se, etc.???
É alta a percentagem da população nestas condições, mormente nos países da periferia capitalista. Então, que tipo de liberdade conquistamos, senão um novo e cruel escravismo na modernidade???
Na China, os trabalhadores dormem em gavetas no próprio ambiente de produção e vivem para comer e dormir, num estágio de escravidão comparável ao do seus antepassados dos tempos dos mandarins. Foi para isto que se fez a revolução marxista-leninista em 1949???
Na África, a contradição entre a sua inserção da modernidade mercantil sem os níveis de produtividade concorrencial exigidos pelo mercado e a completa destruição de processos seculares de produção rural está levando seus povos à barbárie truculenta de disputa de poder por governantes bestiais.
O que faz com que pessoas desesperadas enfrentem os riscos de uma travessia num barco improvisado mar adentro esperando chegar a um lugar onde serão rejeitados???
O que faz com que pessoas andem milhares de quilômetros a pé se dirigindo à fronteira da meca do capitalismo mundial, os Estados Unidos, para lá serem presos, separados dos filhos, mortos pela polícia de fronteira ou deportados como seres indesejados???
No Brasil, ser trabalhador assalariado (quando consegue emprego) significa:
— morar num local da periferia das cidades com estrutura urbana das mais inadequadas (sem boa pavimentação ou nenhuma, sem esgoto sanitário, sem boa distribuição de água e luz, etc.);
— conviver com transporte caro, superlotado e demorado, escola de qualidade inferior, atendimento de saúde precário, etc.);
— enfrentar a violência urbana desembestada (mais parece estarmos a viver num tempo de guerra!), temendo o tempo todo que uma bala perdida encontre a sua cabeça ou a de seus familiares;
— não dispor de uma alimentação minimamente adequada (agora tornada ainda mais precária em razão da inflação que corrói o seu salário, que é um grande parte direcionado para a compra de alimentos;
— estar privado de um atendimento médico-hospitalar que possa proporcionar saúde nos mínimos quesitos;
— idem, das possibilidade de crescimento intelectual e profissional exigido pelo avanço tecnológico da produção, tornando-se um ser inútil à escravização por inaptidão para o processo produtivo tecnológico, ou seja, ficar relegado ao não produz, não come (o vertiginoso crescimento da criminalidade tem muito a ver com isto);
— idem, de acesso à arte de boa qualidade, porque o que seu paupérrimo poder aquisitivo lhe permite tem baixa qualidade, numa interação desqualificada de causa e efeito que somente o faz retroceder.
O mais grave da relação social escravista da forma-valor é que o escravizado não luta por sua libertação a partir de uma forma alternativa de vida social, mas busca tomar o lugar do escravizador, ou seja, aspira a ser um burguês dominador, com os respectivos privilégios sociais.
Muitos se aventuram pelo comércio ilegal do tráfico de drogas para ficarem ricos e poderosos, impondo -se pelas armas e intimidação; outros ingressam nas milícias opressoras de venda de segurança, mercadorias e serviços, num território de constante disputa entre facções criminosas.
Por outro lado, o caráter onívoro da forma-mercadoria escravizadora coloca todas as virtudes humanas (como solidariedade, generosidade, afeto, postura pacifista, humildade sem submissão para com seu semelhante, sociabilidade construtiva, talento, etc.) como aspectos descartáveis e menores diante do objeto teleológico preponderante, que é o de servir à dinâmica autotélica de acumular dinheiro.
Sob o capital, se algum gesto de humanismo superior não representar submissão à lógica do ganhar dinheiro (ou seja, não proporcione lucro para seu autor), é menosprezado como supérfluo.
— é mais importante o laboratório que vende a vacina do que o mérito do cientista que a descobriu;
— é mais importante o invólucro do que o conteúdo;
— é mais importante a imagem do que a substância;
— é mais importante o sucesso da arte sem qualidade do que a qualidade da arte sem sucesso.
Como somente a alguns é possível se tornar detentor ou gerente do capital (cuja dinâmica de auto-acumulação permanente escraviza até mesmo tais devotos do bezerro de ouro), todos se escravizam ao seu modo de agir suicida.
Acaso a agressão ecológica que transforma em vítimas a todos, sem seletividade, não faz parte desse processo insano da vida mercantil que faz com que toda a sociedade siga cegamente para o precipício, encantada pela flauta mágica do valor?
A nossa sorte é que estamos a assistir aos impasses da auto-reprodução do valor na quantidade necessária (cada vez mais elevada) para a sobrevivência do capitalismo, o que nos impelirá a libertamo-nos do encantamento da flauta mágica do capital que nos escraviza, quiçá antes de atingirmos o abismo...
A distribuição de dinheiro sem valor que agora ocorre como forma de manutenção do poder de compra da população e do fluxo de irrigação das relações mercantis (ou seja, do capitalismo) não vai sustentar-se por longo tempo, obrigando-nos a adotarmos um novo modo de produção e de relação social.
Chegamos ao momento no qual o escravo da modernidade se tornou um ser humano sem qualidade buscando sofregamente uma única e pretensa qualidade: ficar rico.
Mas, como tudo no capital é contraditório, agora tal desiderato está sendo negado de forma expressiva e majoritária a altas percentagens da população.
Daí decorre que os processos autofágicos de falências, inevitáveis face à insustentabilidade de um sistema que provoca e impulsiona a desigualdade econômica extrema, tendem a fazer com que todo esse castelo de areia desmorone pela própria insubsistência de conteúdo e a riqueza material, acessível a todos, se sobreponha à riqueza abstrata escravista.
O processo dialético histórico aliado à conscientização teórica, poderá nos libertar verdadeiramente desse escravismo, pois, afinal, o ser humano tem o instinto de sobrevivência que pode transformar em força concreta revolucionária a luta contra a força abstrata destrutiva e autodestrutiva do capital. (por Dalton Rosado)
Vídeo de Ano Novo do grupo Crítica
Radical, narrado pelo Dalton Rosado
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