sábado, 30 de março de 2019

PARA NOSSO PRESIDENTE, ERAM TEMPOS DOURADOS; PARA OS POBRES, ANOS DE PENÚRIA, INCERTEZAS E AMARGURAS

encontro com a ditadura – 7
Por força da idade, não me é possível falar sobre minhas memórias da ditadura: como sou de 1988, vim ao mundo plenamente na Nova República. Porém, posso trazer-lhes o testemunho de parentes.

Ao contrário de outros, não vou relembrar prisões, torturas ou assassinatos; abordarei um aspecto hediondo da ditadura que não era totalmente visível para a classe média urbana da época. Falarei, em geral, de como era a vida nos grotões do Brasil sob o regime militar, relatando um pouco da experiência de meus pais, que cresceram durante o período da ditadura. 

Venho de uma família pobre de origem rural. Meu pai e minha mãe nasceram numa cidade do interior de Minas Gerais, da região de Governador Valadares, região mais conhecida como Vale do Rio Doce, a qual emprestou seu nome à companhia de minério. 

Apesar de ser, sem dúvida, uma das regiões mais ricas do mundo em minério de ferro, é também uma das mais pobres do estado. Quem ainda hoje viaja pela linha de trem que liga Belo Horizonte ao Espírito Santo, se depara com lugarejos miseráveis e crianças vendendo picolés e água nas estações. Até alguns anos atrás, os mais desavisados dos passageiros perdiam bonés e relógios, furtados por ladrões que se aproximavam do trem estacionado. 

A cidade dos meus pais não teve a sorte de possuir uma linha de trem passando por ela. Foi sempre um grotão enfiado no meio do nada.

Meus pais eram de família agricultora. Viviam da plantação de auto-subsistência, vendendo o excedente para tirar um pouco de dinheiro. 

A família da minha mãe possuía ao menos uma terra própria para plantio, enquanto a família do meu pai vivia do empréstimo de terras de terceiros, a famosa meia. Sim, um sistema de produção medieval ainda existia no interior brasileiro da segunda metade do século XX. 

Não existiam escolas e as começavam a trabalhar na plantação tão logo atingissem tamanho suficiente. A família numerosa – justamente para gerar ampla mão-de-obra no roçado – forçava um processo de criação familiar descentralizada, com os irmãos maiores cuidando dos menores e todos dependendo do acaso. 

Mortes por doenças eram corriqueiras. Pelos relatos de meus pais, chegam a quase uma dezena – somando os dois lados – o número de mortes prematuras de irmãos e irmãs. Cólera, febre amarela, doenças intestinais ou anemia eram motivos comuns. 

A fome era uma constante. Quando a plantação ia mal ou (no caso do meu pai) não se encontrava terra para trabalhar, o jeito era racionar a comida entre as numerosas bocas e esperar por uma sorte melhor. Não havia qualquer ajuda governamental para minorar a situação. 

Em geral, conforme disse, não havia escolas. E quando existiam eram elitizadas, pois as crianças pobres não podiam ser desviadas do trabalho (meu pai, p. ex., só terminou a 4ª série primária quando já era adolescente e o ensino médio quando chegava à idade de 40 anos). 

A própria agricultura praticada pelas famílias de meus pais era rústica, baseada na enxadinha e no plantio intuitivo, seguindo a ocorrência ou não de chuvas. Não havia apoio de tecnologia ou de conhecimentos técnicos. Ainda hoje, se a antiga casa de minha mãe for visitada, é possível ver os moedores manuais de arroz e o fogão à lenha. Na década de 1990 ainda se usavam lamparinas de querosene para iluminar a casa. 

Igual a milhões de outros, meu pai emigrou para a capital, Belo Horizonte, na década de 70, fugindo justamente desta miséria. Nela encontrou uma situação um pouco melhor, mas não radicalmente diferente. Morava na periferia, num barracão também sem luz nem água encanada. 

O baixo salário tornava difícil até a compra de um simples rádio de pilha e o desemprego tornou-se corriqueiro após o malogro do milagre econômico. 

O presidente Bolsonaro e sua turma podem muito bem sentir falta dos anos de chumbo, pois desfrutavam das benesses  do poder e viviam na bonança, bem nutridos em bairros de classe média. 

Mas o povo sofrido, que via seus filhos morrerem por desnutrição e que vivia na incerteza sobre se teria  pão em sua mesa no dia seguinte, não possui quaisquer saudades desta época politica e socialmente nefasta. (por David Emanuel de Souza Coelho) 

3 comentários:

Anônimo disse...

Celso, assim como o autor não vivi a época da ditadura e tenha uma curiosidade: qual era, em geral, a motivação dos jovens da época para aderir à guerrilha, decisão corajosa e drástica? Convicção ideológica? Ou tinha mais a ver com o pertencimento a um grupo?

celsolungaretti disse...

A luta armada era inexpressiva no contexto de 1968, não creio que houvesse mais de uns 300 quadros (entre militantes, aliados e simpatizantes) nela engajados no Brasil inteiro.

Mas, embora pipocassem algumas ações do movimento operário, o que deu a tônica daquele ano foi o movimento estudantil. Para efeito de comparação, lembre-se que uma única passeata reuniu 100 mil manifestantes.

Como resposta, a repressão foi se tornando cada vez mais truculenta; um dos integrantes do nosso esquema secundarista foi preso por suspeita, espancado, tomou choques, sofreu o diabo; como insistisse em suas alegações de inocência e os torturadores não tivessem certeza de que ele era militante, soltaram-no.

Afora isto, os grupos para-militares de direita consentidos pela ditadura, como o CCC, barbarizavam à vontade, invadindo teatros, espancando manifestantes, praticando atentados, utilizaram armas de fogo naquele confronto entre os estudantes do Mackenzie e da Filosofia, etc.

Então, no segundo semestre de 1968, já estava evidente para nós que o regime fecharia cada vez mais e que não dava para enfrentarmos de peito aberto aquela violência toda.

Antes mesmo do AI-5, eu e os 7 companheiros do meu grupo secundarista já procurávamos uma organização armada para nos engajarmos. Simplesmente porque não admitíamos desistir da luta e chegamos à conclusão de que era suicídio travá-la usando nossas próprias identidades, morando nas mesmas casas, trabalhando nos mesmos empregos. Em poucas semanas nos prenderiam e detonariam conosco.

A única chance de, pelo menos, sobreviver algum tempo na ativa era passando à clandestinidade, municiando-nos de identidades falsas, tendo dinheiro para dedicarmo-nos em tempo integral à revolução, recebendo um treinamento militar básico e armas para nos defendermos, essas coisas que só as organizações guerrilheiras nos poderiam oferecer.

Em suma, como a luta ficara perigosa demais, ou pularíamos fora ou nos capacitaríamos para travá-la como a nova situação exigia. De todo aquele pessoal que participara das grandes manifestações estudantis, a imensa maioria pulou fora e bem poucos seguimos adiante. Devíamos ser mais teimosos do que os outros.

Mas, não que nos agradassem os rumos que a coisa tomou. Era mais uma opção do tipo pegar ou largar.

O fato é que passamos 1968 inteiro percebendo como as pessoas comuns desprezavam a esquerda que fugira do pau quando os militares deram o golpe. Militantes do passado nos paravam nas passeatas para alertar: "Cuidado, quando a coisa engrossar, os líderes vão se salvar sozinhos e deixar vocês no fogo!".

Nós oito nos sentíamos como que obrigados a provar que os esquerdistas também tinham culhões. Pagamos muito caro por isso, todos os oito.

Mas, olhando para trás, eu percebo que se tivesse agido diferente, perderia o respeito por mim mesmo e me tornaria um pusilânime qualquer. Às vezes é melhor aceitarmos nosso destino do que fugirmos dele.

Anônimo disse...

Maravilhoso, Celso! Muito obrigado pelo relato extenso e minucioso. Abraço!

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