"O carnaval é a invenção do diabo que
Deus abençoou" (Caetano Veloso)
Gosto do carnaval e de sua capacidade de, por algum modo, misturar segmentos sociais díspares.
Gosto de sua capacidade de tornar real a fantasia.
Gosto das milhares de canções que, com suas letras, exaltam a superação momentânea da dor cotidiana.
Gosto dessa catarse social na qual, irmanados pela cachaça, cerveja ou pelo uísque no meio da rua e escondido debaixo de uma máscara ou adorno qualquer, as pessoas sentem-se livres para serem o que quiserem.
Gosto do beijo roubado que, mesmo antes de ser dado, já diz sim e é sequenciado por um sorriso de aceitação.
Gosto do bloco do sujo e do bloco da pipoca, dos que não podem pagar e sem nenhum complexo de inferioridade extravasam as suas alegrias.
Gosto da quimera do carnaval e até de a felicidade do pobre parecer uma grande ilusão, uma vez que se trabalha ano inteiro por um momento de sonho para fazer a fantasia de rei, ou de pirata, ou jardineira, mesmo que tudo vá se acabar na 4ª feira.
Gosto daquele personagem que vestiu uma camisa listrada e saiu por aí; que ao invés de tomar chá com torrada, bebeu a cachaça Paraty; que levava um canivete no cinto e um pandeiro na mão; que tirou o seu anel de doutor para não dar o que falar; e que ouvia alegre o refrão sossega, leão!.
Gosto da praça que é do povo como o céu de do condor, e que diz que tudo aquilo vai ficar mesmo na praça e que vá para o salão grã-fino a gente sem graça a desfilar os seus privilégios elitistas.
Gosto do carnaval de rua, pois, afinal, como disse Cazuza, o inferno é um baile de carnaval no Monte Líbano.
Gosto da ofegante epidemia que se chama carnaval.
Gosto das marchinhas que dizem ei, você aí, me dá um dinheiro aí, me dá um dinheiro aí, e que se não der vai fazer uma grande e boa confusão.
Gosto do Joãosinho Trinta e seu Cristo encoberto pelo lixo sem luxo.
Gosto também do esplendor luxuoso das escolas de sambas tradicionais da Marquês de Sapucaí, manifestação cultural nascida nos morros maltrapilhos e que mostrou para a cidade do asfalto e para o mundo quão capaz é a cultura popular.
Gosto do samba enredo que pergunta diga espelho meu, se há na avenida alguém mais feliz do que eu, esquecendo as dívidas, a opressão e o sufoco dos 362 dias restantes nos quais a realidade é cruel.
Gosto dos bonecos de Olinda e da sátira como instrumento de contestação envolvido num sorriso demolidor de toda a hipocrisia oficial.
Gosto dos trios elétricos, invenção popular do Dodô e Osmar da Bahia, que atrás deles só não vai quem já morreu, quem já botou pra quebrar e aprendeu que é do outro lado, do lado, lado que é lado, do lado, lado de lá.
Gosto da filha da Chiquita Bacana que nunca entra em cana porque é família demais; que puxou à mãe; que não cai em armadilhas; e que entrou para o women’s liberation front.
Gosto da identificação imediata entre pessoas que sequer se conhecem, mas que se irmanam numa folia capaz de juntar aqueles que são adversários na luta pela sobrevivência.
Gosto da Chiquinha Gonzaga, mulher precursora, extraordinária, e do seu ô abre alas, que eu quero passar; ô abre alas que eu quero passar; eu sou da lira e não posso negar; que o às de ouro é quem vai ganhar.
Gosto da ala das baianas, na qual a idade não interfere na alegria de ir para a rua cantar o samba de sua escola.
Gosto de saber que vai passar pela avenida um bloco popular; e que cada paralelepípedo dessa cidade vai se arrepiar ao lembrar que ali passaram sambas imortais.
Gosto dos que pensam que cachaça é água, mesmo sabendo que cachaça não é água, não; que vem do alambique e que água vem do ribeirão; e tomam todas sem se importar com a ressaca do outro dia.
Gosto do frevo pernambucano cujo título deriva da pronúncia popular incorreta da palavra fervo, incorporada ao português como sinônimo de alegria, e que canta Felinto, Pedro Salgado, Guilherme, Fenelon, cadê seus blocos famosos? Bloco das Flores, Andaluzas, Pirilampos, Apôis Fum, dos carnavais passados.
Gosto dos saudosos Batutas de São José do Recife antigo, com seus frevos inesquecíveis.
Gosto do bumba meu boi de São Luiz do Maranhão e seu ritmo carnavalesco diferenciado e original.
Gosto do carnaboi do Amazonas, no qual os blocos Caprichoso e Garantido fazem a disputa do bem na qual o mais feliz é quem ganha e quem perde chora as lágrimas da alegria.
Gosto da Banda de Ipanema e das centenas de blocos que agitam as ruas do Rio de Janeiro, lavando a alma dos cariocas humilhados pelo roubo e opressão de tudo que é a antítese do melhor sentido do carnaval.
Gosto do Adoniran Barbosa que mostrou que São Paulo não é o túmulo do samba, tanto que que hoje tem um carnaval de rua de fazer inveja a qualquer carioca com 100 anos de praia.
Gosto da Mancha Verde e dos Gaviões da Fiel, que trazem para o carnaval a referência a outro tipo de catarse, a do futebol, no qual na arquibancada um desconhecido abraça e beija outro desconhecido após o gol do seu time preferido.
Gosto do carnaval e de sua catarse transcendente, ainda que tenha, infelizmente, data marcada para terminar, pois tudo se acaba na 4ª feira.
Voltam as cinzas da vida real sem o brilho momentâneo e breve da purpurina.
Gosto dessa felicidade do carnaval, mesmo que fugaz, pois a felicidade é como uma gota de orvalho num pétala de flor, que brilha tranquila e depois de breve, oscila e cai como uma lágrima de amor. (por Dalton Rosado)
Um comentário:
Sensacional, perfeito! Que prazer ler um texto tão claro do que é o verdadeiro carnaval brasileiro, pois pode ter carnaval em outros cantos do planeta, mas igual ou melhor do que o carnaval brasileiro não há.
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