Seu olhar se deteve por um momento no rosto suado do menino, que viera correndo. Depois voltou a prestar atenção nos ramos verdes das folhagens e no céu azul.
O Senhor X não era propriamente um vagabundo. É algo mais ligado à falta de vontade, como acontece com algumas pessoas. Ele só conseguia fazer alguma coisa quando sentia-se inspirado. Para ganhar algum dinheiro, ajustou-se temporariamente à tarefa de tomar conta dos alunos da escola quando algum professor faltasse.
Sua missão era conter a algazarra dos pequenos. Os adultos querem assim. Mas é mesmo de se admirar que as muralhas da China estejam ainda de pé, com tanta criança que tem por lá. A algazarra dos adultos, quem contém?
“A diretora da escola está chamando o senhor.”
Significava que ele ia ter de ficar algumas horas em pé, girando o globo terrestre para lá e para cá. "Aqui é a Austrália. Lá, a Antártida. E a Itália. Ela tem o formato de uma bota! Está chutando a Sicília!” Os pequeninos e pequeninas rindo, esta é a cena.
No fim do mês vinha o pequeno cheque, que se transformava no pequeno dinheiro. O Senhor X gostava das carinhas inocentes da criançada. Os filhotes humanos são lindos.
E quando crianças não gostam de crianças? Se socam, se xingam. Meninos batem nas meninas, meninas batem nos meninos. Como aquela menininha cor de canela, olhos pretinhos pretinhos. E chorosos.
Foi assim: os cabelos dela eram pretos e escorridos. Uma menina neste mundo, meu Deus, e chorando. Batiam nela. “Eles me batem todos os dias. É só eu chegar na escola e eles me rodeiam, já vão puxando o cabelo, beliscando, xingando.”
Eles são a criançada. Eles falam que a mãe dela não presta, que anda com todos os homens. E batem nela. Mundo mau. O coração do Senhor X a pular no peito, as pernas fracas e moles. O ar que nem entrava nos pulmões. Eram os olhos pretinhos. Uma menina magrinha, na confusão deste mundo.
Eles caçoam por causa da mãe dela. Dizem que é uma mulher má, que vive atrás de tudo quanto é homem. Caçoam também por causa do pai dela. Dizem que bate na mulher quase todos os dias.
O Senhor X pegou um pedaço de pau e entregou à menina: “Amanhã, você entra na escola já batendo em quem bate em você. Não precisa falar nada. Entra e já vai batendo. Se alguém perguntar quem mandou, fala que fui eu.”
- É?
- É.
O riso descontrolado, balançando todo o corpinho da menina e as lágrimas se misturando com uma expressão já um pouco alegre.
“E pode dizer a quem te bate que os pais deles também batem nas mães deles. Pode dizer que na casa deles também tem briga e eles que não fiquem caçoando de ninguém por isso.”
Ah, o amor, raciocinava o Senhor X. Lembrou de seu casamento. Ela era magra, silenciosa e o fascinava. Gostou dela na primeira batida de olhos. O primeiro beijo aconteceu no banco do jardim. Ah, enlaçá-la pela cintura, passear com ela pela praça, sentir seu cheiro. Juras de amor.
Casamento.
A diretora da escola perguntou ao Senhor X o que ele tinha feito para transformar aquela menina chorona numa menina sorridente e cheia de entusiasmo e vontade de viver. Agora a menina trazia consigo junto aos livros um pedaço de pau. Os olhos sempre brilhando, como se a alma quisesse saltar do corpo. Em casa, lavava a louça e fazia o serviço como gente grande, cantando.
Algumas mães tinham vindo perguntar o que acontecera aos seus filhos. Um galo na cabeça daquele ali, o joelho do grandalhão doendo, o dedo enrolado com pano naquele magrelo. “O que você fez, psicólogo?”, zombava a diretora.
O Senhor X e a Senhora X casaram e juraram amor eterno. Quando o Senhor X soube que a Senhora X o traia, ele perdeu a vontade de trabalhar.
Lá no bairro, o apelido da mulher do Senhor X era rosa-louca. A rosa-louca é uma flor muito branca, muito pequena, com forma de rosa grande. Não tem perfume. É bonita, a gente chega perto, admira, põe a mão e se afasta. A rosa-louca é chamada assim porque dá o ano inteiro, a qualquer hora, em qualquer canto, terreno baldio, praça, jardim. A cabeça do Senhor X girava, girava, girava.
Há um tempão que o Senhor X ficava ruminando, tentando explicar as coisas, nas tardes ensolaradas, ouvindo o canto monótono da cigarra. É uma vagabunda essa danada, canta e farreia sem a mínima vergonha.
O Senhor X achava que algum escritor talvez um dia escrevesse um livro denominado “A ninfomania e seus efeitos trágicos sobre as crianças de todos os lares do mundo”. E o Senhor X, sempre à busca de explicações, como todo bom apaixonado sempre faz.
Ninfomania, lia ele, tendência, nas mulheres, para o abuso do coito. Histeromania, metromania, uteromania, andromania, furor uterino. Tudo mais ou menos a mesma coisa.
No homem, lia ele, esse caráter patológico de conseqüências trágicas para a segurança emocional dos filhos, pensava o Senhor X, esse caráter patológico do sexo é o hipersexualismo ou satiríase. Ou afrodisia, que serve para os dois sexos.
Confrontar a satiríase para ver bem o significado: satiríase, excitação mórbida própria dos sátiros da mitologia. Excitação sexual masculina mórbida. Ninfomania parece não ter nada a ver com histeria, (insistia o Senhor X), que esta é a neurose caracterizada pela transformação de conflitos psicológicos em sintomas orgânicos.
E tem a histerese, que é um dos vários efeitos que aparentam uma espécie de atrito interno, acompanhado pela geração de calor na substância afetada.E tem também a histerese magnética, que é a que ocorre quando uma substância ferromagnética é submetida a um campo magnético variável.
Desde quando as explicações didáticas, os números, as estatísticas, os detalhamentos técnicos, conseguem contentar um coração apaixonado? O Senhor X nunca iria chegar a conclusão nenhuma acerca de motivos.
Mas os corações apaixonados não desistem, mesmo sabendo que tudo está perdido. Aceitar os argumentos do coração foi o único caminho. Então o senhor X decidiu por sua própria conta que, em questões de amor, em questões de possibilidade de vida amorosa e pacífica de um casal, a força de vontade não influi.
O muito que se consegue, empregando-se a força de vontade, a disciplina, a perseverança (e mesmo a força bruta) é conquistar sucesso em negócios, nos estudos, na política e até nas artes. Mas é por puro acaso que um casal de dá bem.
Um estudo completo sobre a lei das afinidades não tem fim. “O homem trava a batalha, mas a vitória vem do Senhor”, diz a religião. Por puro acaso, por puro acaso, chorava o coração do Senhor X. É por puro acaso que um homem e uma mulher vêm a se conhecer, a se atrair, a se darem um ao outro, a viverem uma vida juntos e relativamente felizes e em paz com os filhos.
Os amigos, contando suas proezas, diziam ao senhor X: “Eu não desisti, lutei, insisti, até que a conquistei”. Não diziam como fazer uma cigarra parar de cantar e farrear. Se elas, as mulheres dos amigos não quisessem, rosnava o Senhor X, seria inútil a força de vontade deles.
O advogado pode muito bem gostar de uma moça e esta, apesar do prestígio e estatura social do pretendente, escolherá casar com o mecânico, o jovem mecânico que chega belo e confiante não se sabe de onde. O médico a mesma coisa, e sua amada poderá preferir o ferroviário, o menino que ela por acaso conheceu no bailinho do bairro. E assim por diante.
Portanto, para o Senhor X, segundo suas conclusões ao som do canto da cigarra, no fundo do quintal, debaixo do céu azul, a felicidade de um casal é fundamentada no puro acaso. Se coincidir que a outra parte, por motivos cósmicos e misteriosos, concorde, se coincidir que ambas as partes concordem em se aceitar, a sociedade dá certo.
Quando um dos sócios não quer, e muda de planos, e quebra a jura, e começa a cantar e a farrear, torna-se absolutamente impossível convencê-lo do contrário, como se faz numa empresa comercial, por exemplo. A felicidade do homem, da mulher, dos filhos, da família, está por um fio de cabelo.
Por Apollo Natali |
Ela agarrou na mão forte dele e os dois desceram a ladeira. Pai e filha, esta será sempre uma cena bonita neste mundo, não é mesmo? O Senhor X estava com a cabeça estourando de tanto pensar.
Um comentário:
Maravilha, maravilha.
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