Uma frase célebre de Hermann Goering, o segundo personagem mais poderoso da Alemanha nazista: "Quando ouço falar em cultura, quero logo puxar meu revólver".
Sabe-se lá o motivo de rejeição tão visceral, aparentemente maior ainda que a dos nazistas comuns --todos eles, afinal, eram avessos à arte, ao pensamento e às luzes do espírito, preferindo os preconceitos mais tacanhos e as fantasias medievais.
O certo é que todos temos calos doloridos.
Um dos meus é a tutela imposta a adultos. Era-me extremamente penoso ter de suportar o ambiente sufocante da ditadura militar, depois de tê-la enfrentado de peito aberto, mas sem sucesso.
Anos intermináveis em que otoridades as mais obtusas decidiam aquilo que poderíamos fazer, o que falar e o que calar, quais filmes nos seria permitido ver, quais músicas ouvir, etc.
Um ridículo processo a que respondi na Justiça Civil --depois dos quatro em auditorias militares por ter pegado em armas contra a tirania-- porque um promotor asnático, além de ser fiel servidor do arbítrio, não entendia nada de jornalismo: responsabilizou-me por um anúncio publicitário e por um conto com autoria identificada, publicados numa revista da qual eu era redator.
Como num enredo kafkiano, não bastou eu explicar, logo na primeira audiência, que ambos não tinham nada a ver com minhas atribuições profissionais. Tive de suportar umas cinco audiências intragáveis. Para piorar, eu e o dono da revista éramos convocados para as 13 horas mas a palhaçada ficava sempre para o final da tarde, pois os processos com réus presos tinham preferência.
E a própria sensação de insegurança nos reduzia à condição de crianças. Sabíamo-nos o tempo todo espionados, vigiados, discriminados.
Não foi surpresa nenhuma haver encontrado depois, nos arquivos oficiais, relatório da visita periódica que faziam ao edifício no qual eu morava, para indagar de zelador e porteiros quais eram meus hábitos (e os pobres coitados, tamanha era a sua paúra, nem ousaram me contar...).
Resumindo, depois das torturas e da prisão, eu sofria a cada dia com as restrições que nos eram impostas a todos e com a percepção de ser, individualmente, persona non grata, com os mastins permanentemente farejando à cata de um pretexto para me estraçalharem.
Então, quando ouço falar em aberrações autoritárias como a Lei Seca, quero logo puxar meu revólver retórico. Agora, pelo menos, posso protestar contra elas, fazendo soar bem alta minha indignação.
E ela é tamanha que nem sequer me ocorre dissecar o mostrengo, como fez, brilhantemente, o veterano colega Jânio de Freitas em sua coluna deste domingo, Elitismo autoritário.
Trata-se, por isso mesmo, de um perfeito complemento para meu artigo STJ fulmina a Lei Seca. Bravíssimo!!!. Daí reproduzi-lo na íntegra e recomendá-lo enfaticamente:
"A Lei Seca veio embaralhar, de uma parte, a combinação bebedeira/automóvel e, de outra, o autoritarismo.
Para começar, é uma lei elitista típica do Brasil. Quem dispõe de mordomias por posses próprias ou pagas pelo Tesouro Nacional, como é o caso dos congressistas que impuseram a lei, está livre para beber à vontade, a qualquer hora, e transpor qualquer blitz. Suas posses ou o dinheiro oficial lhe proporcionam o serviçal conveniente para as circunstâncias: o motorista.
A lei é, portanto, contra a classe média. Essa que beberica como uma pequena distensão, como um lazer à falta de melhores.
Quem bebe um ou dois copos de vinho em várias horas de uma festa ou de um jantar, por exemplo, compõe a imensa maioria dos atingidos pelo rigor arbitrário da lei. Mas, como norma, não são os que causam acidentes por terem ingerido alguma porção alcoólica. Em contrapartida, a probabilidade de deter os que perdem as condições de dirigir é insignificante. Um êxito apenas ocasional, dada a forçosa desproporção entre as blitze possíveis e a área urbana livre para os embriagados trafegarem sem encontrar-se com a malha fina.
A lei é elitista ainda na sua destinação. Inspirou-se e pretende (em vão, como se tem visto) prevenir acidentes em que motoristas alcoolizados têm feito vítimas chocantes, essencialmente, por sua condição social. E pelos bairros onde mais ocorrem tais acidentes. A frustrada ação repressora o comprova o elitismo: as blitze não são feitas na periferia ou subúrbios, onde -os costumes sugerem- seria farta a coleta de desrespeito ao índice exíguo da lei. Como se deduz do volumoso noticiário de acidentes naquelas áreas. Ou seja, só os bacanas não devem matar e matar-se com seus carros.
A lei confirma o seu elitismo também por outra via trágica: os acidentes terríveis com ônibus intermunicipais e interestaduais estão todos os dias na TV, com dezenas e mais dezenas de mortos, feridos e incapacitados. Os acidentes com carretas e caminhões não chocam menos. Mas a Lei Seca não lhes concedeu sequer a menor menção.
É indispensável que os motoristas de ônibus sejam submetidos ao bafômetro antes da partida. E outra vez ao sair das paradas intermediárias. Os motoristas de carretas e caminhões provocaram a proibição de venda de bebida na beira das estradas, mas nem a restrição é cumprida, nem é suficiente para restringir a guarda da bebida. E nessas omissões da autoridade estão as causas da sucessão de desastres horríveis com veículos pesados. Sem providências contrárias.
Está mais do que provada a ineficácia do autoritarismo como sistema socialmente educativo. O que pode mudar as condutas sociais é a persuasão. A campanha da camisinha é exemplo excelente: persuasiva, por impossibilidade de ser impositiva, pegou com rapidez e criou novo costume. O abandono do cigarro por milhões de fumantes convictos dá outro exemplo: é fácil ouvir que a rejeição veio do conhecimento dos efeitos maléficos, martelados pelos médicos, e não das proibições de fumar ali ou acolá. A maior parte das proibições decorreu já da rejeição que se difundia.
A modalidade da Lei Seca se explica muito por sua origem: a bancada evangélica. A Ação Católica e outras organizações religiosas, dedicadas à influência política, não retornaram ao Congresso e à política na volta da democracia. Com penetração crescente, porém, os novos evangélicos assumiram seus papéis. Extremados no conservadorismo, só admitem leis e regras sujeitas às suas concepções. Nisso, mesmo a qualidade do fazer não parece importar. A Lei Seca e, já andando pelo Congresso, seu extremismo final saíram dessa usina.
A lei elitista anti-etilista é um produto do autoritarismo que não crê em educação social e em formação de civilidade".
Um comentário:
Celso, legal seria que todo aquele que gosta de uma bebidinha deixasse o carro em casa, mas isso não acontece. Grande parte dos acidentes graves e fatais são causados por motoristas embriagados. A bebida, em certa quantidade, dependendo da pessoa, retarda sentidos e nubla a percepção. Bebida é pra relaxar e esquecer da vida, ou se divertir a custa dela, mas não para quem tem que dirigir. Se a pessoa vai pra 'balada' de carro, vai beber e dirigir, não tem como ... Quem morre, vítima de um motorista embriagado, não tem escolha. Houve redução no número de óbitos, apesar de burlarem as blitz e de propinarem os fiscais dessa lei. Correlação existe. Se uma só vida tivesse sido salva, acho que já teria valido. Quanto vale uma vida? ... Obs.: A referida lei não proíbe ninguém de beber, só de dirigir após fazê-lo.
Postar um comentário