quinta-feira, 5 de abril de 2012

A DEMOCRACIA QUE (NÃO) TEMOS E A QUE PRECISAMOS CONSTRUIR

A democracia começou a surgir com a tomada de decisões na praça pública, que é do povo como o céu é do condor.

O modelo que se tornou paradigmático foi o de Atenas, a partir do século VI a.C., quando podiam participar da Ekklesia (assembléia) os homens com idade acima de 18 anos. Os temas relevantes para a comunidade, incluindo a designação e permanência dos oficiais nos cargos, eram discutidos e as propostas, colocadas em votação.

No século IV a.C. passou a ser exigido um quórum de 6 mil cidadãos para que os temas mais relevantes pudessem ser votados. Nesta época, a assembléia era convocada pelo menos quatro vezes por mês, alternando-se três encontros rotineiros e um mais importante, no qual se tratava do suprimento de grãos, da defesa da cidade e outras questões prioritárias.

No começo do século V a.C., a  Ekklesia  delegou aos  Nomothetai  a tarefa que seu próprio título define: a de  fazedores de lei.

E, para organizar a pauta das discussões da  Ekklesia, fiscalizar o cumprimento do que já fora deliberado e supervisionar os oficiais, surgiram os  bouleutai  (conselheiros), inicialmente em número de 400, recrutados por sorteio dentre os cidadãos acima de 30 anos. Com o tempo se tornou um conselho de 500 membros, sendo 50 de cada uma das dez tribos (divisões políticas artificiais no corpo dos cidadãos) existentes.

Há dois milênios e meio, portanto,  lançaram-se as bases da democracia atual.

O modelo ateniense funcionou às mil maravilhas... na civilizadíssima Atenas. Em Roma já era desfigurado pela supremacia dos abastados (os patrícios) e pela subjugação do Senado e dos magistrados a tiranos.

Tal ideal foi retomado na era das revoluções burguesas, com um acréscimo fundamental: a definição clara dos direitos dos governados, para que pudessem se defender de abusos das autoridades. Esta é a essência da Declaração de Direitos de 1689 da Inglaterra, da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 da França e da Carta de Direitos de 1791 dos EUA.

Quando elas foram consagrados na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, o sistema de pesos e contrapesos ficou, teoricamente, perfeito:
  • os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário a interagirem e buscarem o equilíbrio, além de atuarem um sobre o outro no sentido de evitar a hipertrofia de algum deles e excessos nos quais venha a incorrer;
  • quarto poder, a imprensa, fiscalizando os três;
  • e a Declaração Universal dos Direitos Humanos fixando os limites que nenhum deles pode transpor.
TEORIA E PRÁTICA
 
    Mas, lembrando o bordão do Joelmir Beting,  na prática, a teoria é outra.

    A democracia burguesa sempre favoreceu a perpetuação do capitalismo e da dominação de classe, até por consagrar o princípio da propriedade privada dos meios de produção. 

    Trata-se do alicerce do edifício jurídico sob o qual vivemos, daí as dificuldades encontradas pelos que tentam substituir o primado da ganância, da competição e da desigualdade por um modelo diferente de sociedade, calcado na justiça social e na cooperação solidária entre os homens.

    E, quando os interesses mais vitais da burguesia foram ameaçados por movimentos que não conflitavam com as leis vigentes, os poderosos nunca hesitaram em passar por cima delas,  suspendendo-as  temporariamente enquanto promoviam banhos de sangue (nazismo, fascismo, franquismo, salazarismo, ditaduras militares do 3º mundo, etc.).

    Até que, como antevia Herbert Marcuse na longínqua década de 1950, o recurso à força bruta foi se tornando desnecessário face:
    • ao progresso material, suficiente para tanger a maioria dos trabalhadores ao conformismo, embora estejam recebendo apenas parcela irrisória de seus frutos;
    • à avassaladora eficiência da tecnologia colocada a serviço da manutenção do status quo; e
    • à influência atordoante e mesmerizante dos meios de comunicação de massa, que martelam dia e noite os valores subjacentes à exploração do homem pelo homem.
    Graças às técnicas científicas de manipulação e à tendenciosidade extremada da indústria cultural, o cidadão comum é levado a descrer da própria possibilidade de transformarmos o mundo --mesmo saltando aos olhos que a transformação não só é necessária como se torna cada vez mais imperativa, como única possibilidade de sobrevivência da humanidade face à crise permanente da economia capitalista e aos efeitos catastróficos das agressões à natureza/dilapidação dos recursos naturais imprescindíveis à existência humana.

    O pomposo funcionamento dos três Poderes ainda nos oferece brechas para obtermos pequenos êxitos contra os  donos de gado e gente, mas não nos iludamos: hoje o verdadeiro poder é o econômico, que esvaziou e sateliza o Executivo, Legislativo e Judiciário, reduzidos a meras fachadas, além de ter colocado a imprensa escandalosamente a seu serviço.

    Restam-nos os preceitos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que devemos defender com unhas e dentes, pois são grandes trunfos para resistirmos à fascistização e ao avanço da desumanidade.

    E a titânica tarefa de transformarmos a democracia burguesa em democracia real, com a restituição do poder ao povo --que hoje é objeto, nunca sujeito, das decisões que afetam o seu destino.

    O cenário atual, comparado à bela democracia ateniense, sugere terra arrasada.

    Enfim, não adianta chorarmos sobre o leite derramado. Quanto maior a dificuldade de uma empreitada, mais urge darmos o primeiro passo, ao qual seguir-se-ão todos os outros.

    Daí eu encerrar com a inesquecível frase do dirigente esportivo chileno Carlos Dittborn, depois de um terremoto haver praticamente destruído a infra-estrutura com a qual seu país contava para sediar o Mundial 1962 da Fifa: "Porque nada tenemos, todo lo haremos".

    Hoje não nos resta quase nada. Temos de começar logo a reconstruir tudo.

    Obs.: artigo escrito a pedido da companheira Ana Helena Tavares, cujo blogue Quem tem medo da democracia? comemorará no próximo domingo (8) um ano de existência sob tal denominação.

    2 comentários:

    Anônimo disse...

    Caraca ... olhando assim, parece que todo progresso material e até mesmo o aumento da expectativa de vida não representam nada. Parece que o fato de que antes, quando se podia matar qualquer um à toa - bastava ter os meios para tal - ou se apropriar de seus bens e inclusive de seus fihos e mulher, comparado a agora, é tudo a mesma coisa: não mudou nada! É isso? Lendo o texto, parece que trabalhar até 14 horas/dia - como se trabalhava no tempo da revolução industrial, inclusive com trabalho infantil institucionalizado - e hoje, é tudo igual. Nada mudou! Estamos no pior dos mundos! Concordo que há diferenças sociais absurdas, mas que houve e tem havido melhoras, inclusive aqui, isso tem, inclusive com ascenção social. Se o padrão TOP A é insustentável, o que se deveria é lutar para acabar com ele. Enquanto quem está nos pontos mais baixos da escala e nos intermediários estiver subindo, é uma boa coisa. Sim, o mundo como um todo também é injusto - vamos denunciar isso e lutar contra - mas o tal discurso da terra arrasada é um erro, a meu ver. Se é para fazer revolução em cima disso, vai falhar mais uma vez: não vão acreditar. Quem hoje tem, por exemplo, um nível de vida médio - ainda que modesto - não trocaria isso por uma aventura socialista. E sem povo não há revolução. Vanguarda não muda sistema. Sim, temos que adotar o máximo possível dos princípios e práticas socialistas já provados, mas não dá pra propor troca de campo na base do voluntarismo. O povão gosta de consumir e de poder escolher o que, como e quando vai comprar - diz a eles que consumo é coisa de burguês e verá a resposta. O Capitalismo talvez seja uma etapa, como Marx dizia, entre o feudalismo e o socialismo, mas ainda está bem vigente. Só irá mudar, como Roma, quando cair por si mesmo, por suas próprias contradições. Lutar para ampliar e não deixar retirar direitos eu acho legal e importante. Achar que vamos derrubar um sistema que tá aí há séculos, só porque achamos que não funciona como deveria, é quimera. O sonho de cada um é particular, específico. A tua ou a minha noção de solidariedade são diferentes, e a da galera aí fora também. De coletivo, idem. De individualidade, também. Tentar homogeneizar isso é difícil: qual o padrão, quem dá o modelo? Como construir consenso sem acabar impondo a vontade de alguns? Como lidar com os que não querem participar? Como falar a mesma língua e estabelecer objetivos comuns? Construir democracia significa que alguém tem um projeto e acha que ele se encaixa pra todo mundo: mesmo que seja pra ser uma construção coletiva, alguém sempre toma a frente e influencia mais. Quando abandonaremos, de fato, o vanguardismo? Quem quer mudar o mundo geralmente parte de algum pré-projeto que não foi construído socialmente ou coletivamente ... é projeto de grupo, de partido, de elite.

    celsolungaretti disse...

    Companheiro,

    já abordei todos esses temas ao longo dos tempos. Então sugiro que vc dê uma olhada em
    http://naufrago-da-utopia.blogspot.com.br/2012/01/os-120-melhores-textos-do-blogue.html

    Veja os artigos relativos à "Construção da nova utopia", que tratam exatamente desses temas.

    Abs.

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