quinta-feira, 7 de abril de 2011

CABEÇA DE PAPEL

Passada a fase da tortura propriamente dita -- que para mim coincidiu com a de incomunicabilidade, fiquei sem receber visita da família ou de advogado, sem sequer a certeza de que não seria assassinado, até o 75º dia de prisão --, vinha a de uma tortura involuntária que os militares infligiam a nós, presos políticos: a de termos de  suportar seu exibicionismo pueril.

Levando uma rotina tediosa, velhos sargentos adoravam ter ouvintes compulsórios de seus  causos  e bravatas.

Éramos obrigados a escutá-los sem manifestar desagrado, sob pena de sermos privados de pequenas mercês, como um reforço no  bandejão  para recuperarmos o peso perdido na etapa da pancadaria, da qual saíamos bem mais magros do que entráramos [meus pais ficaram horrorizados quando me visitaram pela primeira vez, anos depois me contaram que eu parecia um daqueles prisioneiros esqueléticos dos campos de concentração nazistas...].

Na Polícia do Exército da Vila Militar (RJ), cansei de escutar o relato das indignidades a que eles haviam submetido Caetano Veloso e Gilberto Gil. Não lhes perdoavam a fragilidade, comparada ao comportamento mais firme dos militantes. E se orgulhavam, p. ex., de terem arrancado lágrimas de um deles (não me lembro qual) ao tosar-lhe a cabeleira, por pura maldade.

Tal machismo de colegiais, aliás, também se evidenciou nas constantes zombarias e insultos de que era alvo, na PE de São Paulo, um sargento de ascendência nipônica, encarcerado por covardia diante do inimigo.

O pobre coitado transportava víveres para as tropas durante a Operação Registro -- o cerco do qual o comandante Carlos Lamarca escapou à frente de um pequeno grupo de companheiros que treinavam guerrilha, em abril de 1970 --, quando foi dominado pelos fugitivos.

O resto o sargento Kondo me contou quando não havia oficiais o azucrinando:
"Eu estava só com  recos  [recrutas] inexperientes. Eles nos renderam e obrigaram a transportá-los, no nosso caminhão, para fora do cerco. Disseram que nos matariam se não colaborássemos. Então, passamos as barreiras calados, sim. E por isso estou aqui vivo. É melhor aguentar ofensas do que morrer".
Humilhados na PE da Vila Militar, por pura maldade
Quem o colocou na berlinda, espalhando aos quatro ventos que Lamarca só escapara por culpa dele, foi o repulsivo coronel Erasmo Dias. Os que o vinham atormentar, atiravam-lhe na cara: "Vergonha da farda!". 

Acabou servindo, claro, como o principal bode expiatório do fracasso da operação que mobilizou inutilmente milhares de militares. Se bem me lembro, ficou preso por algum tempo e depois foi expulso do Exército.

Mas, tudo isto foi introdução, para os leitores perceberem as circunstâncias em que ouvi um relato terrível, que até hoje não sei se foi  papo furado  ou se referia a um acontecimento verídico.

Aconteceu de uma patrulha militar surpreender, à noite, um estuprador de menor em ação. Foi levado ao quartel e deveria, evidentemente, ser entregue às autoridades civis.

O oficial que estava de guarda, entretanto, preferiu outra solução.

Mandou que batessem no detido com palmatória, na sola do pé; que o forçassem a correr; e foram repetindo esse tratamento até ele não aguentar nem andar e ter de ser arrastado pelos soldados.

Só então o encaminharam à delegacia. E, claro, os policiais não registraram em lugar nenhum as condições deploráveis em que receberam o prisioneiro. O Exército era todo poderoso.

Isto teria causado a gangrena e morte do estuprador, exatamente como o oficial previra.

Nunca consegui esclarecer se é ou não possível assassinar-se alguém desta maneira. Mas, o  sargentão  contou essa história para seus recrutas com a maior seriedade. Até citou o nome do oficial que teria dado as ordens. Eu só escutei, enojado.

Talvez os leitores com conhecimentos de medicina possam lançar algumas luzes.

3 comentários:

Unknown disse...

Celso,

Começou no SBT a novela AMOR E REVOLUÇÃO que relata os anos de chumbo. Para mim, a melhor parte é quando os ex-militantes aparecem ao vivo, relatando em detalhes todas as torturas de que foram vítimas.

Ontem, 06/04/2011, um ex-preso político relatou que, depois de preso em 1970, colocaram éter no ânus dele, após indescritíveis sessões de tortura no pau-de-arada simplesmente por pura maldade.

Houvir o relato é um horror, mas ter vivido o o próprio horror deve ter sido bem pior.

Os mais jovens ficam chocados quando houvem estes relatos verdadeiros. Mas é bom que todos saibam como agiam os militares, de forma covarde e cruel.

Unknown disse...

Olá Celso,td bem? gostaria de entrar em contato com vc pessoalmente gostaria de esclarecer alguns assuntos relacionados com o sargento Kondo, pois ele foi meu pai, na época do acontecimento tinha apenas 10 anos de idade. abrs Koitshi

celsolungaretti disse...

Prezado Koitschi,

presumo que você esteja querendo saber mais sobre um pai já falecido e, neste sentido, tem toda minha simpatia.

Não tenho nenhum motivo para deixar de falar contigo. Podemos marcar. O meu e-mail é o meu sobrenome, mais arroba, mais gmail, mais com

Só lhe antecipo que poderá ser um papo decepcionante: o episódio ocorreu há 43 anos e já espremi minhas lembranças para escrever este artigo. Creio não ter deixado de fora nada de que eu ainda recorde.

Minha memória é bem a de um jornalista: só registra o principal e apaga detalhes.

Agora, se o que você precisa é de um depoimento simpático ao seu pai para qualquer finalidade, eu o darei com prazer. Detesto que façam alguém de bode expiatório.

Abs.

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