sábado, 9 de outubro de 2010

PARA ENTENDER A DIREITIZAÇÃO DA 'FOLHA'

Na história da imprensa brasileira, a primeira década do século 21 será lembrada como aquela em que a Folha de S. Paulo saiu de vez do armário.

Até então era reputada como neutra, por ora sintonizar-se com posições de esquerda, ora com as de direita. Parecia querer mesmo é provocar polêmicas que se travassem em suas páginas, para chamar a atenção e vender um punhado de jornais a mais.

Seu passado comprometedor já estava praticamente esquecido do grande público, embora o pessoal do meio lembrasse muito bem que a empresa Folha da Manhã havia sido cúmplice e parceira da ditadura militar de 1964/85: não só sintonizava seu conteúdo com os interesses do regime totalitário, como chegava a ceder suas viaturas para a repressão e a facilitar a prisão dos profissionais da casa, que eram chamados à portaria para atender visitantes e encontravam à sua espera equipes do Deops ou do DOI-Codi.

Uma atitude diametralmente oposta à do Grupo Estado, cuja família proprietária, embora tivesse sido participante civil do complô para usurpação do poder em 1964, preservava, pelo menos, sua dignidade pessoal.

Ninguém esquece a frase memorável de um dos Mesquitas, após ordenar aos seguranças que impedissem a entrada de agentes do DOI-Codi no saudoso prédio da rua Major Quedinho: "Ele pode ser subversivo lá fora, mas aqui dentro é meu jornalista". [o perseguido saiu depois do prédio escondido num porta-malas, para ser abrigado no sítio do patrão.]

Dizimados os efetivos da luta armada, Ernesto Geisel assumiu o poder em março/1974 e começou a implementar sua  distensão lenta, gradual e progressiva, desmantelando aos poucos a engrenagem de terrorismo de estado que se tornara dispensável.

Foi quando Golbery do Couto e Silva, eminência parda do governo que se iniciava, cochichou ao dono da Folha: como Geisel, qual déspota esclarecido, pretendia flexibilizar aos poucos a censura, até extingui-la, Golbery sugeriu a Otávio Frias que a Folha assumisse uma postura mais crítica, não deixando O Estado de S. Paulo ocupar sozinho o espaço de oposição jornalística ao regime.

Assim, foi por orientação do próprio  feiticeiro  da ditadura que um grupo de imprensa servil e submisso se travestiu de independente. Mas, claro, isto só viemos a saber bem depois.

Perspicazes, os Frias perceberam que, surfando nessa onda, poderiam não só limpar sua barra pelo colaboracionismo anterior, como tornar a Folha de S. Paulo um jornal atraente para a classe média cada vez mais insatisfeita com o regime militar. Este  ovo de Colombo  lhe garantiria, a médio prazo, a liderança do mercado brasileiro de jornais.

Deram carta branca para o grande Cláudio Abramo, diretor de redação, recrutar alguns dos maiores talentos do jornalismo brasileiro, oferecendo-lhes um porto seguro numa época em que tantos veículos temiam acolhê-los ou impunham-lhes restrições castradoras.

Então, os textos da Folha passaram a ostentar assinaturas vistosas como as de Alberto Dines, Gerardo Mello Mourão, Glauber Rocha, João Batista Natali, Lourenço Diaféria, Luiz Alberto Bahia, Newton Rodrigues, Osvaldo Peralva, Paulo Francis, Perseu Abramo, Plínio Marcos, Tarso de Castro, etc., todos escolhendo suas abordagens sem restrições editoriais (apenas não podiam ir além do que a ditadura conseguia digerir) e desfrutando de espaços os mais generosos.

Além disto, formou uma valorosa equipe de repórteres especiais, com destaque para Ricardo Kotscho, com a Folha passando a desenvolver um apreciável jornalismo investigativo.

"HERÓI. MORTO. NÓS"

Em setembro de 1977, uma crônica descuidada de Diaféria serviu como pretexto para o II Exército exigir a destituição de Cláudio Abramo, pondo um fim à  primavera  da Folha.

Parte da equipe se dispersou, parte permaneceu fazendo textos mais comedidos. De qualquer forma, o jornal já dera a arrancada decisiva, conquistando uma imagem de originalidade e independência que conseguiu manter até meados da década que ora chega ao fim.

A partir do desgaste sofrido por alguns expoentes da esquerda do PT no escândalo do  mensalão  e da exploração exaustiva e tendenciosa desses acontecimentos por parte da extrema-direita (tentando fazer crer que o envolvimento de uns poucos ex-militantes da luta armada em episódios ocorridos 30 anos depois seria suficiente para desqualificar todos os resistentes que outrora pegaram em armas contra a ditadura), a Folha deu nova guinada, desta vez reacionária.

Dizem que o diretor de redação Otávio Frias Filho  viu a luz, convertendo-se tardiamente ao neoliberalismo. Não tenho como checar, mas é possível: quem é alçado a elevadas posições por direito de herança e não por mérito, costuma fazer essas tentativas disparatadas de provar ao mundo que tem, afinal, algum valor próprio...

Outra hipótese: a concorrência da web se fazia sentir cada vez mais, derrubando a tiragem da Folha, que ficou bem mais na dependência dos (e tendo rabo preso com os) grandes anunciantes...

Como pano de fundo havia uma classe média insatisfeita com o Governo Lula, de quem esperava benefícios que não recebeu, ao contrário dos pobres e dos paupérrimos.

Míope, essa classe média não percebia ter caído em desgraça muito mais devido ao aviltamento de suas profissões sob o capitalismo putrefato do que à ação governamental. E a Folha, em vez de esclarecê-la, preferiu oferecer catarse para seu rancor destrambelhado, tangendo-a para o curral da direita.

Assim, todas as questões envolvendo a memória da luta armada e dos resistentes dela participantes passaram a ter tratamento odioso na Folha, como se verificou nos seguintes episódios:
  • ataques histéricos à decisão da Comissão de Anistia do MJ que beneficiou os herdeiros de Carlos Lamarca;
  • polêmica  algoz-e-vítima, durante a qual Élio Gaspari avalizou como informação histórica aceitável o que não passava de lixo ensanguentado da ditadura (as conclusões de IPM's contaminados pela prática generalizada da tortura);
  • caso do perseguido político Cesare Battisti, vítima de noticiário adverso, editoriais lobbistas (como o do dia do julgamento no STF) e da descabida adjetivação de "terrorista" até em títulos de matéria, como se não estivesse levando desde 1981 uma existência resumida a trabalho honesto e fugas da caçada implacável que lhe movem os fascistas e neofascistas italianos;
  • tentativas de desqualificação de Dilma Rousseff, seja imputando-lhe a responsabilidade por um plano de sequestro de Delfim Netto que não era de sua alçada  nem chegou a sair do do papel, seja empenhando-se agora em garimpar nos processos infames da ditadura qualquer informação utilizável contra ela.
A página de Opinião da Folha se abriu para personagens altamente questionáveis como Jarbas Passarinho, Reinaldo Azevedo, Ali Kamel e Wálter Fanganniello Maierovitch. Só ficou faltando o Brilhante Ustra...

Finalmente, na tentativa de defender o inqualificável editorial no qual se referiu ao extinto regime militar como uma "ditabranda", a Folha chegou ao cúmulo de publicar o seguinte (Painel do Leitor, 20/02/2010), ao comentar as mensagens de protesto por ela recebidas: "Quanto aos professores [Fábio Konder] Comparato e [Maria Vitória] Benevides, figuras públicas que até hoje não expressaram repúdio a ditaduras de esquerda, como aquela ainda vigente em Cuba, sua 'indignação' é obviamente cínica e mentirosa".

O jornal declarou guerra à  inteligentsia, fazendo-me lembrar uma frase célebre de Oscar Wilde: "A aversão do século XIX pelo realismo é a cólera de Calibã por ver seu rosto num espelho". 

A Folha passou a reagir com argumentos paupérrimos e beligerância de trogloditas a quem colocasse um espelho diante do seu rosto disforme e repulsivo.

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