Depois de finalizado, postado e expedido o artigo Vandré: de rei a trapo em 58 dias, ocorreu-me outra solução para a charada, que honestamente dividirei com vocês, já que nunca tive compromisso com prestígio e infalibilidade.
Freud nos ensinou que lapsos são significativos, costumam trazer à tona a verdade que não se pode revelar ou não se quer admitir.
Então, chamou-me a atenção que, na entrevista de 2004, Vandré situou sua volta ao Brasil no final da década de 1970. Evidentemente, a imprecisão foi atribuída a problemas mentais.
No Dossiê Globo News, entretanto, ele agora forneceu as datas de chegada e de anúncio da chegada com total precisão: 14 de julho e 11 de setembro.
Parece que, tanto em 2004 quanto agora, ele nos deu uma dica: os motivos de sua mudança de comportamento devem ser buscados em 1973.
Veio-me à lembrança o episódio do dirigente bolchevique que, ao depor num dos julgamentos stalinistas, admitiu os crimes mais inverossímeis, como espionagem a serviço das potências ocidentais e tentativa de envenenar os reservatórios de água soviéticos.
Mas, lá pelas tantas, encaixou a frase: "Todos sabemos que a tortura é um instrumento medieval de justiça".
Os tacanhos Torquemadas acreditaram que ele estivesse negando a existência da tortura na URSS. Mas, na verdade, mandara um recado cifrado, de que se acusava daqueles absurdos para que não o supliciassem mais.
Não fui o único a notar que Vandré nos deu toques nas entrelinhas.
Mas, por que tantos rodeios, afinal? O que o impedia de, em plena democracia, dar nomes aos bois?
Aí, lembrei-me das três ou quatro horas que papeamos em 1980, no seu apartamento da rua Martins Fontes (SP).
O mais significativo de tudo foi a resposta que deu quando perguntei se, aproveitando a liberação pela censura da "Caminhando" e o sucesso que fazia na voz da Simone, ele não aproveitaria para reatar sua carreira.
Respondeu que a música poderia voltar mas, se ele tentasse voltar junto, correria sério risco pessoal.
Perguntei se havia sido ameaçado. Desconversou.
Concluí que ele estivesse se referindo aos atentados terroristas então cometidos pela linha dura, na tentativa de inviabilizar a distensão lenta, gradual e progressiva do ditador Geisel. Se incendiavam bancas de jornais e expediam cartas-bombas a torto e a direito, o que lhes impediria de atentarem contra um artista-símbolo?
Mas, e se a razão do seu temor fosse outra? E se houvesse passado por situações tão traumáticas que a possibilidade de revivê-las fosse totalmente inadmissível para ele?
Ora, com certeza os militares se aproveitariam disto. Por exemplo, com uma variante do velho artifício do policial ruim x policial bom.
Com os presos políticos mais jovens essa jogada era quase sempre tentada. Uns torturadores se mostrando mais bestiais ainda que de hábito, enquanto outro agente fingia compadecer-se e estar tentando ajudar.
Com militantes quase nunca colava. Mas, com um artista, quem sabe?
E, se os espantalhos seriam naturalmente os gorilas das outras Armas, mais identificadas com a repressão política, os aviadores se constituiriam na opção óbvia para o papel de amigos e protetores do Vandré.
Terão tentado isso com ele? Terá ele acreditado?
O certo é que esta possibilidade faz muito mais sentido do que aceitarmos como normal sua devoção pela FAB, a tecla mais desafinada de toda sua entrevista de sábado e de todas as suas declarações de um bom tempo para cá.
Em 1980, ele deixou transparecer para mim que utilizava as esquisitices para ser considerado inofensivo por aqueles que poderiam fazer-lhe mal.
Agora também ele ora parece estar encenando uma farsa, ora ter um motivo para suas ações que não quer ou não pode revelar.
Entre os que foram submetidos a essa máquina de triturar seres humanos, há os que continuam paranóicos até hoje. Não seria nada surpreendente e inaudito se Vandré ainda temesse estar na mira dos antigos algozes, e visse nos oficiais da FAB seus guardiães.
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