Para entendermos e refletirmos sobre o que aconteceu com Geraldo Vandré, a opinião de uma terapeuta tem tudo a ver.
Ainda mais sendo a de uma profissional altamente conceituada, como Adriana Tanese Nogueira -- que, ademais, é filha de um ex-militante da resistência à ditadura e está contando as memórias familiares num livro que posta, capítulo por capítulo, num de seus blogues, à medida que os vai escrevendo.
Então, é com prazer que reproduzo aqui o artigo Uma análise de Vandré, da nossa boa Adriana, uma autora que vocês não devem perder de vista:
Sempre tive a convicção interna de que é preciso estar à altura do que somos. Quem já não se pegou tendo algumas idéias fantásticas? Ou sentindo ter que realizar uma missão muito maior do que si próprio?
Acho que algo assim aconteceu com Geraldo Vandré. Minha filha de 12 anos ouvindo outro dia, pela primeira vez, a música Caminhando ficou profundamente emocionada. Não foram só as letras que lhe chamaram a atenção, mas também a voz de Geraldo Vandré, o tom, a alma que está presente na forma como ele canta. É profunda, é sentida, é tão sagaz e intensa que tem o efeito de um megafone gigantesco.
Caminhando, um hino. A melhor música de 1968, digna das melhores produções musicais do ano mais emocionante e radical da história ocidental, quando se acreditava que se podia mudar o mundo. O ano em que nos países civilizados de 1º mundo, jovens e intelectuais acordaram do longo sono da hierarquia social e das tradições conservadoras para respirar o ar fresco da vida nova e ousar querer mais, ousar mudar, ousar dizer NÃO.
Infelizmente, no nosso Brasil subdesenvolvido, 1968 foi o ano da catástrofe. Desde aquele ano o “não” foi erradicado da cultura brasileira. Já notaram como todos dizem “sim”? Se fazem o que prometem é outro assunto, se ligam, se mantêm compromissos, se comparecem no horário marcado, se realizam o que prometeram, são fieis à palavra dada - tudo isso são outros quinhentos. O importante é dizer “sim”, nunca entrar em atrito. A oposição é proibida (porque no imaginário significa morte, fim); a hipocrisia aceita (e todos vivemos no jeitinho brasileiro). Enquanto a ONU decretava 1968 como Ano Internacional dos Direitos Humanos, no Brasil começou a orgia de desrespeito aos direitos humanos e ao Humano em geral.
Em setembro de 1968, no III Festival Internacional da Canção, Vandré canta o Pra não dizer que não falei das flores. Foi um sucesso imediato. Todos, de alguma forma, compreenderam o que significava, a letra penetrou rapidamente debaixo da pele como uma pomada regenerante. Logo em seguida, Vandré perdeu seu emprego e antes da emissão das novas Tábuas da Lei (o AI-5) da Toda-Poderosa Ditadura Militar, em dezembro daquele mesmo ano, Geraldo Vandré já estava fora do Pais. Por causa de um música.
Como muitos exiliados, ele não gostou de sua nova vida. Arrancado de sua patria para salvar-se, o cantor fraquejou e cedeu às drogas e à depressão. Foi sua primeira grande falha. Ele não soube pagar o preço pelo presente que doou ao Brasil: uma simples música. Mas uma Grande Música, o hino de uma geração, o sentido de uma luta, o sonho de um povo, de muitos povos. A verdade cantada em poesia de que todos somos iguais, “braços dados ou não”, de que há muitos soldados “perdidos com armas na mão”. E o militarismo não é uma barbarie destinada a acabar um dia? Na Itália, há muitos anos é dada a opção de fazer o serviço “civil” no lugar do serviço militar. Os homens novos não identificam a masculinidade com o uso da força, isso é coisa do passado.
É também uma verdade psicológica e sociológica de altissimo valor que “quem sabe faz a hora, não espera acontecer”. Conhecimento que não se transforma em ação não serve para nada, é vazio e enganoso. Saber é fazer. Saber é ser; logo, é agir. E isso porque temos “os amores na mente” e a “História na mão”: é por amor que se muda o mundo e as lições do passado devem ensinar alguma coisa. Povo sem passado é povo burro que patina no presente (e isso vale do ponto de vista psicológico também: é preciso comprender a própria história para mudá-la). Somente assim, “caminhando e cantando, e seguindo a canção”, poderemos aprender e ensinar “uma nova lição”, criar um novo mundo.
É essa “nova lição” que o regime militar exorcizou perseguindo e depois “confundindo” a cabeça do criador dessas palavras. Convinha aos exímios generais uma mais primitiva divisão do conflito entre bons e maus, fardados e “terroristas”, protetores da pátria e “malucos assassinos”. Era mais digerível uma versão simplória da realidade, regada a muito ódio, exaltação e medo.
A Caminhando era mais poderosa do que bombas e ameaças. Por isso, quando seu incauto autor resolveu cometer o seu segundo erro e ceder à angústia da saudade, voltando para a pátria amada cedo demais (1973), ele foi “acolhido” pela gentil força armada que “cuidou” dele num agradável hospital psiquiátrico, onde Vandré permaneceu isolado dos outros pacientes. Eis então o que significa na truculenta língua do regime militar o projeto transformador contido na Caminhando: uma loucura. Uma doença tão perigosa que deveria ser mantida separada dos outros malucos que ocupavam a simpática clínica para doentes mentais.
Reflitamos. Desde quando as Forças Armadas "acolhem" os cidadãos nos aeroportos? As Forças Armadas acolhem generais, presidente, embaixadores e altos funcionários. Cidadãos são acolhidos em suas chegadas ao País por familiares, amantes, amigos e colegas. Forças Armadas "acolhem" cidadãos somente quando os prendem ou os sequestram. Como Vandré não era um alto oficial, e não havia matado ou roubado, ele deve ter sido sequestrado para ser "reprogramado".
É certo. Num regime militar onde a livre expressão é proibida, onde todas as fontes, oportunidades e instrumentos de reflexão crítica são proibidos, “as flores pelo chão” devem ser incineradas e sua existência negada.
Foi assim que o poeta, cuja Musa genial inspirou-lhe a grande canção de esperança, foi hospedado por quase dois meses numa clínica psiquiátrica para “rever” suas idéias. O que mais a Musa poderia sugerir ao poeta, justamente nos anos mais negros da história do Brasil? O regime militar preocupou-se, então, em “explicar” ao poeta com "métodos apropriados" que suas músicas afinal não passavam de lorotas tolas, que sendo ele um cantor de porte, não como o Caetano e o Gil que “fazem qualquer coisa”, não lhe cabia permanecer no mesmo campo musical.
Tiveram sucesso. Hoje, Geraldo Vandré só faz “música erudita”, aquela que poucos entendem (qual melhor jeito de mantê-lo longe do povo?). Ele inclusive não gosta da cultura de massa (nem eu gosto, mas ela virou o que virou porque foi expurgada anos atrás de todos os pensadores críticos!) e é por isso que não canta mais para o Brasil.
Não só, surpreendentemente, Vandré agora tem a Força Aérea Brasileira como seu xodó, se aloja em suas instalações, carrega papel impresso da FAB, símbolos e tudo o mais. Como ocorreu tal mudança?
Ao assistir à entrevista da Globo pelos 75 anos de Vandré, a impressão que tive foi de um homem quebrado, mas "disfarçado". Ele não parece amargurado, arrependido, deprimido. Poderia sentir-se assim, tem motivos para isso, seria totalmente normal. Ele também não parece um homem que mudou de idéias, que deixou de acreditar em algo e passou a pensar diferente, nem que fosse de forma fanática. Qual é a dele, então?
Ele parece uma pessoa cuja estrutura mental foi embaralhada por um novo e diferente maço de cartas, que nada tem a ver com a identidade original. Imaginem jogar baralho e de repente aparece aqui e alí uma carta com outro desenho, outro significado e que pertence a outro tipo de jogo. Imaginem dois “jogos” convivendo na psicologia de Vandré aparentemente de forma “pacífica”, pois uma situação dessas deveria levar ao desequilíbrio mental. Mas o Vandré parece normal. É como se, de alguma forma, tivessem conseguido “reprogramar” o cantor de modo a manter sua aparente sanidade mas atuando em "modo diferente”.
Celso Lungaretti sustenta a tese da lavagem cerebral, não em sentido amplo, mas estrito. Ela acontece quando se submete uma pessoa a uma condição de total dependência de seus carcereiros. Estes controlam tudo o que a pessoa faz, desde o que e quando ela come e vai ao banheiro, até o sono e todos seus movimentos. Dá para imaginar o que isso significa? Estar totalmente à mercê do inimigo cruel?
Após um tempo assim, por instinto de sobrevivência e busca sentido (para não ficar louco), a vítima passa do sentimento de pânico e abandono total àquele de buscar conivência com seus algozes. Se, além dos “cuidados materiais" pelos quais a vítima passa, são-lhe soministrados também “cuidados psicológicos”, tipo “ensinar-lhe” o que ela deve pensar e acreditar, temos um prato cheio para compreender a esquisita entrevista de Geraldo Vandré à Globo.
Além de lento, o homem não é explicitamente patético, como seria alguém que fracassou em seu propósito de vida e choraminga; também não mudou de idéia, como disse, pois hoje, de alguma forma, ele até nega ter tido “idéias”; não está amargurado, como teria todo direito a estar. Ao contrário, aparenta uma estranha leveza e distância, mas também não está fazendo algo de concreto. Tudo é confuso e nublado. Algumas coisas ele “não lembra”, mas as letras de suas músicas ele lembra perfeitamente.
Talvez só lá encontraremos Geraldo Vandré, no fio da meada que a Musa lhe inspirou, mas que o homem não conseguiu aguentar. Aquele fio da meada de sanidade mental que os “preocupados cuidados militares” não conseguiram apagar - e nunca irão apagar da bagagem cultural do Brasil. Morre o homem consciente, mas não morre a música revolucionária, justamente porque "a vida não se resume em festivais".
Psicoterapeuta formada em Milão (Itália) e radicada na Flórida (EUA), Adriana Tanese Nogueira é idealizadora do blogue Psicologia Dialética e da ONG Amigas do Parto.
Um comentário:
Puxa, que beleza de artigo!
Quando vi essa entrevista com o Vandré, eu me senti, sei lá, DESESPERADO deve ser a palavra adequada.
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