segunda-feira, 20 de setembro de 2010

O PRECURSOR DO TIRIRICA: UM RINOCERONTE QUE VIROU "EXCELÊNCIA"...

Outubro de 1959. Eu era um pirralho que mal acabara de completar nove anos e acompanhava meu pai à escola na qual ele votava.

Ele se desencantara da política com o suicídio de Getúlio Vargas, que lhe provocou até lágrimas. Desde então, referia-se a todos os políticos como “safados” e “ladrões”, reservando os piores insultos a Carlos Lacerda, o  corvo, por causa do papel que desempenhara na morte de seu ídolo.

Via com simpatia o protesto que tinha brotado de forma quase espontânea na capital paulista: como manifestação de repúdio ao governador  rouba-mas-faz  Adhemar de Barros e ao baixíssimo nível dos candidatos à Câmara Municipal, pregava-se o voto no rinoceronte Cacareco.

O simpático animal fora emprestado pelo zôo do Rio de Janeiro quando da fundação do Zoológico de São Paulo e cativara os paulistanos. Então, quando os cariocas o pediram de volta, houve resistência à sua devolução.

Como o Cacareco estava no noticiário exatamente no período eleitoral, bastou o jornalista Itaboraí Martins lançar essa idéia para que ela galvanizasse a cidade.

Surgiram centenas de cabos eleitorais fazendo campanha voluntária para o rinoceronte. Até cédulas em seu nome foram impressas por gráficos brincalhões.

Naquele tempo não havia urna eletrônica. O mesário entregava um envelope e o eleitor ia para a cabine, nele colocava cédula(s) do(s) candidato(s) que escolhera, lacrava e vinha colocar na urna.

Meu pai queria votar no Cacareco, mas não tinha cédula. Eu olhava para o chão, na esperança de encontrar alguma, dentre as milhares espalhadas pela calçada. E encontrei.

Todo orgulhoso, entreguei-a a meu pai. Depois, ao sair da sala de votação, ele me garantiu que aproveitara mesmo aquela cédula.

Não via a hora de chegar em casa e contar à minha mãe a pequena aventura. Hoje, 51 anos depois, o episódio continua vivo na minha memória.

Cacareco foi o vereador mais votado de 1959, com quase 100 mil votos. O partido que elegeu a maior bancada teve, ao todo, cerca de 95 mil votos. E o candidato com maior votação não passou de 11 mil.

O rinoceronte, entretanto, não tomou posse, pois havia sido devolvido ao zoológico carioca dois dias antes do pleito. O que não impediu que a comemoração do seu triunfo perdurasse até o carnaval seguinte, quando várias marchinhas o homenagearam, inclusive uma inesquecível: “Cacareco É O Maior”, gravada pelo palhaço Risadinha:
“Ca...ca...Cacareco, Cacareco, Cacareco é o maior.
Ca...ca...Cacareco, de ninguém tem dó...”
O então jornalista Neil Ferreira, que depois se tornaria publicitário famoso, também lhe dedicou uma crônica saborosa na principal revista brasileira da época, O Cruzeiro (24/10/59): “Cacareco agora é Excelência”. Eis alguns trechos:
“Dos 540 candidatos que ‘ofereceram suas vidas em holocausto ao bem-estar público’ concorrendo às 45 cadeiras da Câmara Municipal de São Paulo, somente um -- Cacareco -- conseguiu empolgar, de maneira espetacularmente inédita o eleitorado paulistano. Sem prometer nada (ele não pode prometer: não sabe nem falar), sem partido politíco definido (...), enfim, com sua candidatura lançada somente alguns dias antes do pleito, sua eleição está garantida. A soma de seus votos é um recorde nas eleições municipais de São Paulo.

“Sua candidatura ganhou corpo no seio da massa, de maneira espontânea, conquistou o restinho da classe média que ainda não morreu de fome e atingiu as mais altas camadas da burguesia.

“Cacareco se zangou quando foi intentada (e conseguida) uma solução extralegal e antidemocrática para sua candidatura: (...) as ‘forças ocultas’ conseguiram que o candidato popular fôsse ‘exilado’, dois dias antes da eleição, para o Rio de Janeiro. O ‘golpe’ consumou-se na calada da noite, mas a coisa não foi tão calada assim: sem mais aquela, enfiaram-no num caminhão. Aí, sim, ele se danou. Ficou perigoso. Não só para o regime, mas (e principalmente) para quem estava por perto. Mas o ‘Povo’ e as ‘Classes Oprimidas’ foram magnificamente à forra e concederam, aproximadamente, cem mil votos a Cacareco.”
Bons tempos aqueles, em que havia brasileiros cordiais utilizando o humor como arma contra a sordidez política!

E, cá entre nós, talvez fosse melhor termos no Legislativo um autêntico casca grossa como o Cacareco, do que um bufão banal como o Tiririca (que deverá atingir a maior votação para deputado federal deste ano, na casa de 900 mil, segundo as projeções).

Pois o primeiro seria capaz de, imbuído de justa indignação, investir contra alguns personagens lá presentes.

Enquanto o segundo não leva jeito de ser um daqueles palhaços cuja alegria é ver o circo pegar fogo.

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