quarta-feira, 17 de março de 2010

ELES PAIRAM ACIMA DO INFERNO QUE CRIARAM. NÓS NÃO TEMOS ESCAPATÓRIA.

O nada discreto (e frequentemente repulsivo) charme da burguesia e dos abastados de classe média é mostrado numa ótima reportagem da revista National Geographic sobre a utilização cada vez maior de helicópteros na cidade de São Paulo: Helicopterópolis.
A todos que sofrem interminavelmente no trânsito engarrafado das metrópoles, jogando no ralo um tempo que poderia ser aproveitado em lazer e atividades gratificantes, recomendo a leitura atenta da matéria de Bernardo Gutiérrez.

Eis alguns trechos marcantes:
"Minha suspeita inicial, de que a classe alta vivia quase no céu, literalmente, foi confirmada pouco a pouco. Hoje, nos dias úteis, se contabilizam uma média de 400 voos diários. Ao longo de 2008, foram registradas oficialmente 68,8 mil decolagens e aterrissagens. A frota da cidade já tem 325 aeronaves - 100 a menos que Nova York, onde está a maior frota do mundo.

"'Os clientes de helicóptero fazem o check-in no 23o andar. Não precisam descer até a recepção', afirma um orgulhoso Garcia [gerente do hotel Renaissance, que, claro, tem heliporto]. Ele menciona alguns hóspedes honorários: o presidente Lula, governadores, pilotos de Fórmula 1. A diária da suíte presidencial custa 19 000 reais; a aterrissagem, 500.

"...lembro-me das histórias do piloto paulista Roberto Nogueira. 'Nesta cidade, algumas crianças vão ao aniversário de seus amigos nos helicópteros de seus pais. Já pilotei para um homem que, para reconquistar sua ex-mulher, subiu ao helicóptero com um microfone e cantou uma música sertaneja'.

"Artoni [Carlos Alberto Artoni, ex-presidente da Associação Brasileira de Pilotos de Helicóptero] apenas sorriu quando perguntei sobre o problema do ruído. 'Quem quiser ouvir passarinhos tem de viver fora de São Paulo. Aqui é preciso se acostumar com a modernidade', disparou.

"Na Daslu, os clientes chegam em Audi, Mercedes e luxuosos 4x4. Ou, sem cerimônia, caem do céu no heliporto privado. (...) Tudo ali revela outra palavra-chave da helicopteromania: riqueza. São Paulo representa 75% do mercado de luxo do Brasil, com um movimento médio estimado de 1,5 bilhão de dólares anuais. Na cidade estão reunidas 58% das famílias ricas do país (443.462, segundo o Atlas da Exclusão Social). Uma funcionária explica-me que muitos usuários do heliporto da Daslu escolheram o espaço simplesmente como lugar de reunião. 'As pessoas desembarcam, passam umas horas e decolam de novo', diz.

"A crise econômica não ameaçou o vigor aéreo de São Paulo, a Helicopterópolis. Quem não tem dinheiro para comprar um helicóptero inteiro pode optar pela propriedade compartilhada. 'Paga-se uma cota e tem-se uso garantido. Um Esquilo custa uns 2,2 milhões de dólares. Nosso cliente pode pagar apenas 10% disso', diz Rogério Andrade, presidente da (...) empresa que gerencia o heliporto da Daslu.

"...cercados de nuvens e solidão, tal como conta [o escritor] Ítalo Calvino [em As Cidades Invisíveis], os homens-helicópteros, 'com binóculos e telescópios apontados para baixo, não se cansam de examiná-la, folha por folha, pedra por pedra, formiga por formiga, contemplando fascinados a própria ausência'. No fundo, acho que consigo escutar Calvino sussurrando 'amam a terra tal como era antes deles'."

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