segunda-feira, 3 de setembro de 2018

SOBRE INCÊNDIOS, GENTE E COISAS

Quando começava a fazer minhas escolhas na vida, algumas músicas me indicaram o caminho. 

A Canção nordestina do Vandré, p. ex., tocou o fundo da minha alma. Na primeira vez que a escutei, desatento, o grito que ele solta no meio da canção me capturou e, num átimo, transportou para a realidade sofrida que ele descrevia:
.
"Menino de pé no chão
Já não sabe nem chorar
Reza uma reza comprida 
pra ver se o céu saberá
Mas a chuva não vem, não
E essa dor no coração
aaaaaaaAAAAAAAIIIIII!!!!!!!
Quando é que vai se acabar?
Quando é que vai se acabar?"
 .
De um instante para outro, compreendi que faria tudo ao meu alcance para eliminar ou mitigar essa dor. E, com meus conhecimentos políticos ainda incipientes, nem sequer sabia direito aonde tal disposição me levaria. Mas, antes como agora, sempre segui minhas intuições.
Era, creio, 1965. Eu teria 14 anos. E até hoje dedico meus melhores esforços à causa dos coitadezas. Como um jornalista amigo escreveu quando lancei meu livro, sou um sujeito muito teimoso.

Outra canção que me arrepiou foi Água de meninos, de 1967, na qual Gilberto Gil descreve o incêndio numa feira decadente e chora a morte da única vítima, pobre noiva que nunca casaria, a moça que chegou, vestida de rendas, vinda de Taperoá...
A feira de Água de Meninos em 1957
Admirei muito o Gil por ter prestado tributo a quem ninguém mais prestaria. 

Pensei: cada ser humano é único e merece ser valorizado enquanto vive e lamentado quando morre, mesmo sendo pobre, mesmo sendo insignificante aos olhos da sociedade.

Assim fui, aos poucos, encaixando as peças do quebra-cabeças que me formou.

Então, quando vejo tantas lágrimas derramadas pela destruição de marcos do passado, indiferente não fico: também prezo o conhecimento.

Mas, para mim, sempre me comoverá mais a dor dos vivos, ainda que seja a dos 7 sem-teto mortos e 455 desabrigados pelo incêndio e desabamento de um prédio caindo aos pedaços no Largo do Paissandu, centro velho de São Paulo, há quatro meses.
Desabrigados do prédio que desabou em Sampa

Se coubesse a mim escolher entre salvar esses pobres coitados e salvar as relíquias do museu, lamento, mas essas últimas teriam mesmo virado cinzas. 

A moça de Taperoá, contudo, sobreviveria para o casamento e para desfrutar a felicidade possível nesta sociedade tão insensível e desigual.

Porque, para um revolucionário, gente vale mais do que coisas.

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