terça-feira, 22 de maio de 2012

A COMISSÃO DA VERDADE E A TEORIA DOS DOIS DEMÔNIOS

Já lá se vão seis anos que eu espalho  meus artigos na web. Neste período, seguramente me tornei menos conhecido pelos leitores da grande imprensa, que passou a me discriminar cada vez mais como profissional e a me esconder cada vez mais como personagem do noticiário.

Tendo uma trajetória, no mínimo, inusual, de repente os editores de jornalões e revistonas passaram a considerá-la desinteressante  para o público em geral. Ademais, não me dão o direito de expressar o  outro lado  em lutas das quais sou o principal porta-voz nas batalhas de opinião, nem em relação a acontecimentos históricos de que participei diretamente, sendo amiúde o único veterano a pleitear o direito de resposta.

Mas, o  macartismo à brasileira  não consegue evitar que eu forme opinião. 

É óbvio que as listas negras nas quais é de bom tom não crer, mas  que  las hay, las hay, atrapalham a propagação do meu trabalho e a divulgação de lutas prementes, causando-me impaciência, estresse e até desânimo.


Consola-me, entretanto, a percepção de que a água mole vai aos poucos furando a pedra dura, nesta nova realidade da internet.

Em maio de 2009, p. ex., notei que boa parte dos parlamentares, ao se pronunciarem numa audiência pública sobre o Caso Battisti que teve lugar na Câmara Federal, repetiu argumentação que eu introduzira no debate político.

Como as pedras que atiramos numa lagoa, tais argumentos foram se irradiando, outros os assimilaram em seus textos, acabaram virando voz corrente. Quem hoje se lembra, p. ex., que durante bom tempo fui eu o articulista que mais insistentemente bateu na tecla de que a luta contra a ditadura militar se constituiu numa saga de resistência à tirania?

A perda da  autoria  não me afeta em termos de vaidade, mas eu até que gostaria de contar com um dos seus dividendos, a desobstrução de caminhos, tornando minha vida menos sacrificada. A idade é implacável e nos faz ansiar por facilidades.

Mas, como todo idealista que trava o bom combate, quero mais é que vivam as idéias e tremulem as bandeiras, pouco me importando se serão muitas, poucas ou nenhuma as pessoas capazes de avaliar minha contribuição pessoal.


A grande imprensa me boicota, mas alguns dos seus profissionais e colaboradores escrevem textos assemelhados aos meus. Tenho, ao lê-los, um sentimento de dever cumprido: o objetivo foi alcançado, e é isto o que realmente importa.

Caso da coluna desta 3ª feira (22) do filósofo Vladimir Safatle na Folha de S. Paulo, Toda violação será castigada.

É obrigatório esclarecer que, embora a afinidade de nossas posições desta vez seja total, isto nem de longe implica influência de um sobre o outro. Lançamos mesmo um olhar parecido para as coisas do mundo, de forma que acontece de eu concordar com teses e posturas do Safatle em assuntos sobre os quais eu nem sequer refletira.

Agrada-me pensar, contudo, que de alguma forma eu contribui para o Safatle ter tal clareza de visão, assim como ele tem contribuído para aclarar a minha.

Eis a íntegra do artigo, o melhor já publicado pela grande imprensa sobre a  teoria dos dois demônios  que ronda a Comissão da Verdade:


"Toda violação dos direitos humanos será investigada." Com essa frase, Gilson Dipp, um dos integrantes da Comissão da Verdade, procurou constranger setores da esquerda que procuram levar a cabo as exigências de punição aos crimes da ditadura militar.

Trata-se de pressupor que tanto o aparato estatal da ditadura militar quanto os membros da luta armada foram responsáveis por violações dos direitos humanos. É como se a verdadeira função da Comissão da Verdade fosse referendar a versão oficial de que todos os lados cometeram excessos equivalentes, por isso o melhor é não punir nada.

No entanto o pressuposto de Dipp é da mais crassa má-fé. Na verdade, com essa frase, ele se torna, ao contrário, responsável por uma das piores violações dos direitos humanos.

Sua afirmação induz à criminalização do direito de resistência, este que -desde a Declaração dos Direitos Universais do Homem e do Cidadão- é, ao lado dos direitos à propriedade, à segurança e à liberdade, um dos quatro direitos humanos fundamentais.

Digamos de maneira clara: simplesmente não houve violação dos direitos humanos por parte da luta armada contra a ditadura. Pois ações violentas contra membros do aparato repressivo de um Estado ditatorial e ilegal não são violações dos direitos humanos. São expressões do direito inalienável de resistência.

Os resistentes franceses também fizeram atos violentos contra colaboradores do Exército alemão durante a Segunda Guerra, e nem por isso alguém teve a ideia estúpida de criminalizar suas ações.

Àqueles que se levantam para afirmar que "a guerrilha matou tal soldado, tal financiador da Operação Bandeirantes", devemos dizer:

"Tais ações não podem ser julgadas como crimes, pois elas eram ações de resistência contra um Estado criminoso e ditatorial".

O argumento de que tais grupos de luta armada queriam implementar regimes comunistas no país não muda em nada o fato de que toda ação contra um Estado ilegal é uma ação legal. O que está em questão não é o que tais grupos queriam, mas se um Estado ilegal pode criminalizar ações contra sua existência impetrada por setores da população.

Como se não bastasse, integrantes da Comissão da Verdade que dizem querer investigar ações dos grupos de resistência "esquecem" que os membros da luta armada julgados por crimes de sangue não foram anistiados. Eles apenas receberam uma diminuição das penas.

Ou seja, os únicos anistiados foram os militares, graças a uma lei que eles mesmos fizeram, sem negociação alguma com a sociedade civil.

Nenhum comentário:

Related Posts with Thumbnails