quarta-feira, 9 de outubro de 2024

TIRANDO O VÉU DO IRÃ

 Depois da entrevista coletiva para a imprensa internacional, me coloquei no caminho da saída do entrevistado e à sua passagem lhe estendi a mão, me identificando em francês: "sou jornalista do Brasil, tenho seguido seus filmes e suas denúncias. Espero que seja bem acolhido no país no qual vai viver seu exílio".

Houve um forte aperto de mãos. Enquanto eu fixava seu rosto, ele me sorria, ouvindo a tradutora lhe transmitir em persa meu recado. Talvez lhe tenha parecido original a preocupação do jornalista com a acolhida no lugar onde vai viver, mas isso é próprio de quem já viveu o exílio.

Foram apenas alguns segundos, revividos por mim nestes dias em que as manchetes dos noticiários falam do Irã. O entrevistado era Mohammad Rasoulof, cujo filme As Sementes do Figo Sagrado tinha recebido o Prêmio Especial do Júri no Festival de Cinema de Cannes e foi exibido no telão de 400m2 da Piazza Grande, no Festival suíço de Locarno.

O cinema é também uma maneira de se contar um país. Isso nós brasileiros vivemos durante a ditadura militar. Naquela época, em praticamente todos os festivais no exterior, o cinema brasileiro aparecia e dava sua mensagem denunciando a ditadura e os crimes cometidos pelos militares. Existe mesmo um ótimo texto do cineasta Thiago B. Mendonça sobre esse período de censura e controle, com o título A ditadura e o cinema brasileiro, ilustrado com uma conhecida foto do filme Terra em Transe, de Glauber Rocha.

Retornando ao Irã, existe um texto mais antigo, de Natalia Barrenha, que trata do redescobrimento do cinema iraniano há vinte anos, mas já começando a se defrontar com o problema do fundamentalismo da teocracia islâmica

 Talvez seja instrutivo agora, sob os clarões das explosões dos mísseis iranianos lançados sobre Israel, contar a história do filme de Rasoulof.

Mesmo porque existe a preocupação de alguns setores em mostrar aos brasileiros frequentadores de redes sociais só a visão positiva do Irã, quase uma propaganda, mesmo na questão dos direitos humanos em geral e, na questão da liberdade das mulheres, fazendo de conta ignorar que a teocracia iraniana é também misógina ao extremo.

A curiosidade popular com relação à situação das mulheres iranianas surgiu depois do assassinato da jovem curda Mahsa Amina pela polícia da moralidade, em 2022, pelo crime de não ter o véu chador cobrindo a cabeça, exigido pela religião. Isso foi bastante divulgado pelas televisões brasileiras e, no Irã, provocou numerosas manifestações de mulheres e a criação do movimento Mulher, Vida, Liberdade. A repressão às mulheres foi violenta e o presidente da época, Ibrahim Raisi, aplicou a pena de morte na forca para muitas delas.

O filme de Rasoulof, que precisou fugir do Irã para não ser preso, conta a história de Iman, um jurista fiel e de dedicação servil à teocracia, que chegou ao ápice de sua carreira ao ser nomeado juiz do tribunal revolucionário de Teerã. Iman logo descobre que uma de suas funções é a de assinar as sentenças de morte, decididas pelo tribunal. A situação se complica para Iman quando sua filha mais velha, progressista, abriga em casa uma colega de escola ferida nas manifestações depois do assassinato da jovem Mahsa Amina.

O filme quer ser uma antecipação, pois aposta na revolta da família contra o marido e pai, em outras palavras, numa revolta popular contra a ditadura teocrática, mesmo porque o Irã vai mal economicamente e uma importante parcela da população não apoia o governo.

Uma parte da esquerda francesa se pergunta por que alguns líderes como Mélenchon apoiam o Irã, que não é nenhum exemplo a seguir. Essa atração pelo Irã vem da época da revolução do aiatolá Khomeini, em 1979, contra a monarquia do Xá Rheza Pahlevi. E um dos líderes pensantes e influentes da esquerda dessa época, Michel Foucault, não escondia sua admiração por Khomeini. Enquanto Jean Daniel, diretor do semanário Le Nouvel Observateur dava trânsito livre para Foucault na revista que funcionava como guia do pensamento da esquerda da época.

Jean-Paul Sartre também nutria admiração pelo aiatolá Khomeini, que viveu algum tempo perto de Paris, no município de Yvelines, no Neauphle-le-Château, depois de um longo exílio no Iraque. Sartre acreditava que a queda do Xá daria origem a um regime anticolonialista e anti-imperialista. Na verdade, surgiu uma rigorosa teocracia xiita baseada na lei corânica da charia, incompatível com a observância dos direitos humanos no que se refere à liberdade de expressão, liberdade de crença, liberdade sexual e liberdade das mulheres.

Foucault chegou a criar a expressão espiritualidade política, depois de uma viagem ao Irã, para definir o islamismo do aiatolá Khomeini, embora lhe criticassem ignorar os perigos imanentes de um regime religioso islâmico. Em síntese, Foucault avalisou o regime de Khomeini, que se tornou uma ditadura islâmica, de tal forma que, mesmo hoje, com as interpretações sociológicas do pós-colonialismo, sul global e wokismo, o Irã se beneficia de uma certa proteção e apoio junto da esquerda.

É o caso do Brasil, onde o sul global e a presença do Irã no Brics têm levado a uma islamização da esquerda, reforçada depois da resposta israelense na Faixa de Gaza ao ataque do Hamas no 7 de outubro. A proibição por muitos países europeus, em nome do respeito à laicidade, de que crianças e jovens frequentem as aulas nas escolas públicas usando roupas religiosas que lhes cubram a cabeça, as pernas e o corpo, chegou a ser criticada e considerada islamofobia pela professora Francirosy Campos Barbosa. Na Bélgica, houve protestos semelhantes com a decisão governamental de tornar obrigatória a presença dos alunos do curso ginasial nas aulas de educação sexual.

As redes sociais de esquerda passaram o pano nos crimes do ex-presidente iraniano Ibrahim Raisi, chamado de acougueiro, acusado de condenar à morte oito mil pessoas. Na sua rede social dedicada principalmente à promoção e conhecimento do Irã, o professor Salem Nasser, da FGV, também ignorou a má reputação de Ibrahim Raisi e insinuou serem as leis iranianas melhores que as brasileiras em matéria de direitos humanos. Também não comentou a morte da jovem Mahasa Amina.

A campanha contra o sionismo, por setores da esquerda, fez com que Israel, cujos primeiros kibutz eram de inspiração marxista, venha sendo abandonado em nome do colonialismo imperialista. O contraponto é estar havendo apoio a ditaduras e teocracias, cujas ideologias significam retrocesso inclusive em questões de direitos humanos, gênero, liberdade e paridade das mulheres com os homens. (por Rui Martins)

4 comentários:

Anônimo disse...

Notícia do 'Brasíu', que não vi no globo:
https://www.theguardian.com/global-development/2024/oct/10/i-think-boy-im-a-part-of-all-this-how-local-heroes-reforested-rios-green-heart

Anônimo disse...

Ultimas escenas del Che
https://www.pagina12.com.ar/773308-el-che-muere

Anônimo disse...

Que me desculpe o articulista, mas no fim das contas, o que é Israel? Israel é uma nação ungida pelo próprio Deus Todo Poderoso ou é um Estado Nação como um outro qualquer? Se Israel se auto concebe entre mtos de seus extremistas como uma nação concebida a eles pelo próprio Deus, isso não consegue ser compreendido - e nem deve - pelos outras compreensões do próprio Deus, dada pelos cristãos e os muçulmanos.

O fato dos Kibutz terem essa ou aquela orientação política não interessam mta coisa quando estamos diante de um indiscutível crime contra a humanidade e crime de guerra que ainda se mascaram por uma narrativa fajuta e desmoralizada de legítima defesa, que ainda é endossada e legitimada pelos Estados Unidos da América, que diante do seu poder de veto, junto com suas constantes trapaças e fraudes ao direito internacional, basicamente resumiu a ONU a um clube decadente onde cada chefe de Estado só fala para si, para o eixo geopolítico de que maneira periférica pertence e quem tiver alguma dignidade e seja vertebrado nesse ínterim (Rússia, China, Índia, Irã, talvez Cuba e outros poucos), procure defender sua soberania e existência como nação faça aquilo que pode e no alcance do que convém.

A discussão, penso eu, leva também a uma total rediscussão sobre as forças que supostamente comandam esse mundo e querem dar a sua última palavra. A democracia liberal não é uma unanimidade nos rumos do mundo, não é a última palavra para qualquer ordem civilizada no mundo e grande parte dos povos do mundo não só são incompatíveis com ela, como a desprezam e a julgam, tal como ela é envelopada e vendida, um grande engodo e uma maneira sutil e indigna de submissão e prostração e destruição da própria identidade.

Afinal de contas, que moral tem esses supostos "civilizados" de ditarem e se intrometerem nos assuntos domésticos dos outros? Aceitariam se fizessem o mesmo em seus domínios? Que tipo de prática possuem antes de saírem por aí proferindo seus sermões?

Não quer dizer que sejamos cínicos e indiferentes, ou justifiquemos patifarias cometidas mundo afora na ideia que esse ou aquele chefe de Estado, estando no seu país, possa fazer o que quiser. Se há um compromisso com uma ideia de comunidade internacional, se há um documento que se reconheça como um parâmetro de vivência entre as nações, como é o caso da Carta da ONU, ela tem que ser considerada, respeitada e seus princípios levados a termos por todos, e não quando se quiser ou relativizando suas premissas a mim mesmo ou outra nação aliada de ocasião.

A perspectiva liberal iluminista ocidental, seu sentido petulante e sua auto eletividade e o domínio anglo saxônico na cultura e a escravização do mundo pelo dólar e a imposição de um padrão de consumo inverossímil são inviáveis e são aquilo que estão levando nosso mundo a uma hecatombe e onde de forma irresponsável se sacrifica a tudo e a todos. De uma maneira meio irrefletida e intuitiva, a mim parece que estamos caminhando para uma terceira guerra mundial e com fatores bem parecidos com o que tivemos na primeira. Até a forma de guerrear tem sido parecida, como é o caso da guerra de trincheiras que temos visto no conflito russo ucraniano.

Podemos - e devemos - como brasileiros, termos um questionamento quanto ao regime iraniano, suas idiossincrasias e incongruência, e não há porq não fazermos isso: temos uma tradição sesquicentenária de cooperação, resolução pacífica de divergências e respeito a soberania dos povos. É um lugar do mundo o qual tem uma cosmovisão diferente da nossa, não temos nada a ver com as suas questões geopolíticas e estamos geograficamente distantes o bastante para analisarmos tudo isso com sobriedade e sempre é precioso ter um parâmetro a inclusive concebermos nossa realidade enquanto brasileiros, latino americanos e lusófonos.

Porém, não podemos e nem temos porq sermos juízes dos outros, menos ainda estarmos encampando discursos e propagandas e interesses que não são os nossos.

Anônimo disse...

https://www.trtworld.com/magazine/idea-of-greater-israel-fuelling-netanyahus-ideology-top-un-official-18218835

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