terça-feira, 12 de outubro de 2021

SERES FRÁGEIS E INDEFESOS, HÁ SÉCULOS AS CRIANÇAS SÃO ASSUSTADAS NAS FÁBULAS INFANTIS E CANTIGAS DE TERROR

Você falaria esta palavra matar– para sua doce filha, encolhidinha em seus braços? 

Não? Como não? Falou, sim! Foi quando contou a história da bruxa que queria matar Branca de Neve por envenenamento. 

Eu também falei e um doloroso complexo de culpa me fez mudar de assunto: "Não, filhinha, a bruxa não vai matar". 

"Não vai matar?" –se consolou, lagriminhas a escorrer entre uma porção de solucinhos, minha sobrinha bisneta, três aninhos, inocentes olhinhos, espigados cabelos. 

Seres frágeis e indefesos como esse há séculos são assustados com essa palavra, morte, nas fábulas infantis e cantigas de terror para crianças. A propósito, abaixo o bicho-papão e o boi da cara preta!

Tomemos como exemplos dez historinhas para crianças sempre presentes nas páginas dos livros, telas dos cinemas, palcos de teatros –de Branca de Neve aos Três Porquinhos, de João e Maria à Bela Adormecida. Repare que essas fábulas bombardeiam os cérebros infantis receptivos com episódios de assassinatos, canibalismo, tortura, fratricídios, infanticídios. 

E perseguições, sentimentos doentios de inveja, ciúmes, ódio, vingança, crueldade, abandono de incapaz, preconceitos, discriminação, saques, cárceres privados, bullying. Esses crimes todos que vamos repassar agora, imaginados para o entretenimento de crianças pelos autores das fabulas, a maioria europeias, se julgados, resultariam em prisão perpétua para cada um deles... 

Com a invenção dos vídeos, pixotinhos e pixotinhas são hoje encafifados na poltrona de casa mesmo, não apenas por escrito, agora ao vivo, por bruxas e madrastas ameaçadoras, com seus gritos de terror, gengivas escancaradas, risos sarcásticos – a tramar assassinatos. Para a indústria cultural, o horror e a morte são apenas produtos à venda.

Aterrorizante, pois, é o bullying praticado pela espécie humana contra seus filhotes, desde que o mundo é mundo. Um dos mais cruéis é contar historinhas de terror para crianças sobre bruxas com tendências sempre assassinas, madrastas sempre malvadas, reis sempre besteirentos. Se não, vejamos. 

Na fábula João e Maria, há o assassinato da bruxa praticado por duas crianças, um menino e uma menina, que a jogam no forno e a queimam –e, garante a historinha– queimam até o último osso. 

Ato contínuo, as crianças saqueiam o tesouro da velhinha-capaz-de-grandes-crimes que perpetra tentativa de canibalismo, pois quer comê-las. Como a velhinha conseguiu tanto ouro, diamantes, moedas, não importa. O que vale é que a bruxa planejava comer Mariazinha assada e Joãozinho cozido. 


No início da historinha, os pais cometem crime de abandono de incapaz, pois largam as crianças no mato para que morram. Tudo por incitação da madrasta malvada. Criança, não verás nenhuma fabula tão sanguinolenta como essa!

Em Cinderela, a madrasta e suas duas filhas –feias– rasgam o vestido da jovem –bonita– para ela não ir ao baile do príncipe. Obrigam-na a fazer todos os serviços domésticos e ainda a maltratam com deboches e malvadezas, crime de bullying. As despeitadas trancam a heroína no porão, crime de cárcere privado. Falar o quê?

Bela e a Fera: as irmãs invejosas da Bela maquinam fazer a Fera ficar aborrecida com a moça. Para que? Para perder a paciência com ela e…devorá-la! 

A Fera, fatalmente, vira um príncipe. Trata-se de uma técnica de vendas, eufemismo, para amenizar o ruim. Vender fábulas é preciso.

Noutra versão, uma fada –malvada– tentou seduzir o príncipe, se deu mal, porém seguiu tentando matar Bela e casar com seu pai. O que uma fada malvada não faz por uma mísera lua de mel... Ciúme, trama de morte, sedução, literatura para crianças.

Branca de Neve: o pai da menina, um rei, ficou viúvo e fez a asneira que todos os reis fazem nessas histórias infantis, casou com uma mulher certamente belíssima, naturalmente madrasta, comprovadamente cruel, evidentemente feiticeira. Que sempre maltratou e assustou a menina. Fábula que se preza mata gente boa. 


O escritor da fábula mata o rei, na sua criação literária a madrasta expulsa Branca de Neve e torna-se mandante de assassinato cruel, crime hediondo, contratando um caçador para matar a pequena e trazer o seu coração numa bandeja. Ou embrulhado num jornal, esse detalhe a historinha não explica.


O caçador, único personagem bondoso que jamais aparece em fábulas de terror para crianças, entrega um coração de javali. A madrasta disfarçou-se de bruxa indefesa-feiosa-cara-torta-fingida e primeiro tentou matá-la com um pente envenenado. Depois, matou-a com maçã envenenada. 

Nada que um pouco de erotismo não resolva: o príncipe beijou-a e ela ressuscitou. Veneno aqui, veneno ali, morte aqui, morte ali, para crianças.

Em A Bela Adormecida o terror é semelhante ao de Cinderela. No batismo da Bela, 12 fadas boas receberam presentes, menos uma, a fada malvada, que lança na criança um feitiço cujo resultado seria a morte pelo picar do dedo num fuso ao tecer um pano ainda não especificado. 

A 12ª. fada, boa gente, transformou esse tipo de morte em sono profundo de apenas 100 anos. Uma pechincha. Até o dia em que o príncipe deu um beijo nela e ela acordou. 

A mãe do príncipe, descendente de ogros –tinha de ser!– ficou com vontade de comer os próprios netinhos, os dois filhos da Bela, agora acordada e mãe. Mandou atirar as netas –eram duas meninas– num poço cheio de serpentes, cobras e víboras. 


A rainha antropófaga, canibal, tipo de gente que se alimenta de carne humana -entenderam, crianças?–, cheia de ódio, desequilibrou-se e caiu no poço, onde morreu. Bela e o príncipe foram felizes para sempre. Façam-me um favor!

Em A Cigarra e a Formiga a criançada é obrigada a acreditar que uma querida artista todos os artistas são queridos, tendo como trabalho é cantar com sua voz quente e magnética, nada mais é do que uma vagabunda, enquanto a profissão das formigas, pegar na enxada, essa sim é de honra maior. Ah, esse sistema de desenfreada produção manufatureira capitalista…

Uma história de discriminação, injúria, calúnia, ofensa a uma artista digna cuja vocação produtiva é encantar o mundo com a voz. Belo e acariciante é o canto da artista cigarra em tardes silenciosas e ensolaradas: rrrrrriiiiiiiaaaaaaa!!!!

Os Três Porquinhos é uma historinha para crianças com três tentativas de assassinato. Aliás, quatro. Três tentativas por parte do lobo contra os três bichinhos e uma quarta, a de matar o lobo com fogo. 

Descendo pela chaminé, o lobo sente cheiro de queimado. Era sua cauda que estava sendo assada pelo porquinho dotado da prática de matar, de nome Prático, o justiceiro da turma. Beleza de práticas cruéis relatadas para crianças.

E a facilidade com que o lobo mata a avó da Chapeuzinho Vermelho não banaliza um crime mais do que hediondo, o assassinato de idosos? Depois, as crianças aprendem que o certo é regredirmos dois milênios e voltarmos aos tempos brutais do olho por olho, dente por dente: o caçador mata o lobo.

Beleza de terror é a Mula Sem Cabeça, e essa é lenda nossa, ninguém tasca. Mostra uma rainha –olha elas– comedora de cadáveres de crianças. Nossa! Você não vai contar uma historinha dessas para sua princesinha, vai? 

Num determinado reino, uma rainha costumava ir secretamente ao cemitério à noite. O rei seguiu-a e se deparou com a esposa comendo o cadáver de uma criança. Adulto cretino!, podem estar pensando as crianças e seus responsáveis a respeito do inventor dessa lenda. 

Ao ser pega em flagrante pelo rei, a rainha se transformou numa mula sem cabeça e saiu galopando em direção à mata, nunca mais retornando para a corte. Ainda bem. 


Outra versão da lenda diz que quando uma mulher namora ou casa com um padre ela se transforma numa mula sem cabeça. Outra ainda é que isso acontece quando uma mulher perde a virgindade antes do casamento. 

Por acaso seriam histórias de autoria da burguesia exploradora da boa fé popular com vistas à repressão sexual? Tirem as crianças da sala.

Em A Lenda da Mãe D’Água, também fábula nossa, os irmãos da belíssima índia Iara queriam matá-la por inveja e ciúme de suas qualidades de beleza, trabalho e coragem. Rápida e guerreira, ela é que matou os irmãos, ao se defender. 

Como punição, o pai jogou-a no rio Negro, e lá ela se transformou numa belíssima sereia de cabelos longos e olhos verdes, o tempo todo atraindo os homens de maneira irresistível, fazendo-os vivenciar experiências sexuais incríveis. E matando-os. A gênese de uma prostituta serial killer.

Difícil entender os enigmas de Alice no País das Maravilhas, nem saber por que ela cresce e diminui ao comer certos alimentos. Alice no país do terror enfrenta a imprescindível rainha má, que esbraveja, durante toda a historinha, sua deixa de morte: Cortem-lhe a Cabeça! 

Ordena, sem mais nem menos, que um gato, bichinho querido das crianças, seja decapitado, por pertencer à Duquesa, que ela odeia. Contrariada, arremessa um bebê, que cai nos braços de Alice, que corre para o mato. Infanticídio, gente!

Patinho Feio enche de tristeza os coraçõezinhos da criançada, explorando as circunstâncias de vida de um filho adotivo à procura de sua mamãe. Até ele descobrir que não é pato e, sim, ganso, e enquanto não encontra a mãe verdadeira, sofre, eis a trama desta fábula –rejeição, solidão, bullying dos filhos da madrasta e dela mesma.

Em tempo! Em tempo! –está na hora de espalhar para a molecada do mundo inteiro a lenda real e confortadora de que a Terra está repleta de madrastas e vovozinhas amorosas, dedicadas, que criam e amam apaixonadamente os filhos alheios e os delas também. 

E ouçam, e leiam, brasileiros e brasileiras, e os europeus das fábulas inclusive, o mundo todo, aquelas músicas, poesias e histórias infantis que adoçam os corações de crianças e gente grande, de autoria de Villa Lobos, Toquinho, Vinícius de Morais. 

Há livros (Arca de Noé, José Olympio, 1986, de Vinícius) e CDs (Arca de Noé 1 e 2) com historinhas infantis na base da poesia, nada nada terroristas (genialmente musicadas!) do nosso poetinha e de Toquinho. 

Muito cansado, já perdi toda a alegria de fazer meu tic-tac dia e noite, noite e dia, orquestra ele em O relógio. O cravo desmanchou o namoro com a rosa, debaixo de uma sacada, o cravo ficou magoado e a rosa despetalada, palma, palma, palma, pé, pé, roda, roda, roda, caranguejo peixe é, compõe infantilmente Villa Lobos. Abaixo o terrorismo!

Neste Dia das Crianças, estamos republicando a crônica
mais apreciada pelos leitores deste blog, dentre as
dezenas com que nos brindou o Apollo
Natali, nosso inesquecível
colaborador.

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