terça-feira, 24 de novembro de 2020

O AUMENTO DA REPRESENTATIVIDADE DOS NEGROS NÃO VAI EXTINGUIR O RACISMO; SÓ A SUPERAÇÃO DO CAPITALISMO RESOLVERÁ

david emanuel de souza coelho
RACISMO ESTRUTURAL E CAPITALISMO
A
morte hedionda de um homem negro num supermercado de Porto Alegre trouxe, mais uma vez, ao centro da discussão nacional a questão do racismo. 

Mais do que isso, não apenas há o discurso a respeito do racismo, mas também há um qualificativo para este racismo: estrutural

Embora seja louvável o amplo debate a respeito do racismo e pedagógica a abordagem do tema do racismo estrutural em veículos de massa –os quais, durante décadas, ignoraram ou mesmo negaram a existência do racismo no Brasil– é necessário fazer um contraponto ao uso indiscriminado e acrítico desta terminologia na boca de figuras e instituições liberais e burguesas. 

Quando se fala em racismo estrutural, o objetivo é caracterizar tal racismo como algo socialmente sistêmico, ou seja, algo que não está ligado à vontade de um ou outro indivíduo, sendo, isto sim, fruto de um processo histórico que cristalizou a marginalização de um grupo social. Portanto, o racismo deixa de ser visto enquanto uma questão moral e se torna uma questão social, ligada ao processo histórico de formação do capitalismo. 

E é aqui onde param os analistas liberais. Eles até podem falar sobre o racismo estrutural, mas nunca poderão tirar as conclusões necessárias desta premissa, pois isto implicaria chocar-se com a estrutura econômica defendida por eles. 

O racismo é uma construção do capitalismo. Antes da existência do capitalismo, não havia racismo, isto é, a ideia da superioridade ou inferioridade de uma raça ou cor. Havia xenofobia ou discriminações por origem, mas não racismo. 
O capitalismo criou o racismo para ser viável. O racismo surgiu com seu irmão gêmeo, o colonialismo; a necessidade das nascentes potências europeias de subjugar os ameríndios e os africanos, apropriando-se de seus territórios e de sua força de trabalho, foi o motor inicial do racismo. 

Toda uma justificativa jurídica, teológica e filosófica foi criada para fundamentar a subjugação de índios e negros. No centro desta justificativa estava uma alegada inferioridade destes grupos e a importância de civiliza-los mediante o trabalho e a tutela branco-cristã. 

O que de fato regia todo o processo de subjugação destes seres humanos era, contudo, a necessidade do recém-nascido capitalismo de alavancar a produção agrícola e mineral no recém dominado continente americano. A exploração maciça da força de trabalho escravizada garantia aos europeus a estabilidade da produção e a enorme lucratividade na empreitada, coisa impossível de se conseguir com uma forma de trabalho livre ou mesmo serva, nos moldes feudais. 

Esta primeira fase do capitalismo, eminentemente mercantil, apoiou-se amplamente no trabalho escravo, entupindo a Europa com metais preciosos e produtos agrícolas antes exóticos e que agora faziam a farra das cortes e enchiam os bolsos de comerciantes e banqueiros.

Mas engana-se quem pensa que a situação mudou com o capitalismo industrial. Na verdade, foi nesta época que a ideologia racista atingiu seu auge, ganhando contornos científicos com a criação de pseudo-teorias a respeito da diversidade das raças humanas e da natural inferioridade dos negros e índios.  

A própria escravidão continuou sendo economicamente fundamental para o sistema, pois era com o trabalho escravo que se produziam insumos necessários para tocar as fábricas e manter alimentados os exércitos de trabalhadores assalariados. 

Não à toa, a escravidão foi sendo extinta aos poucos e perdurou por ainda muito tempo nas principais regiões de produção agrícola: sul dos EUA e Brasil. 

Mas à escravidão sucedeu-se o colonialismo, com o avanço europeu sobre a África e a Ásia. O colonialismo foi ainda mais genocida que a escravidão, levando à matança generalizada de milhões de pessoas nestes dois continentes, em nome da extração de matéria-prima e do controle de mercados consumidores. 

Sintomaticamente, será no ápice do colonialismo, o século 19, que também teremos o auge do pensamento racista, agora camuflado em pensamento científico

Negros, árabes, chineses e indianos eram catalogados por instituições acadêmicas da Europa como sendo naturalmente inferiores, bárbaros e incapazes, por sua biologia, de alcançarem o desenvolvimento cultural e econômico das potências europeias. Por isto, pensavam tais iluminados, apenas a colonização e dominação destes povos poderia mudar seu destino. 

Este tipo acabado de pensamento racista surgiu justamente no momento em que o capitalismo industrial precisava ampliar o número de consumidores e pelo fato óbvio de que escravo não compra. Impunha-se, portanto, extinguir o trabalho compulsivo, mas manter a subjugação de negros, índios e asiáticos, pois, enquanto de um lado era necessário que houvesse mercado de trabalho, de outro precisava continuar existindo força de trabalho barata. 
Por isso, o fim do sistema escravocrata não foi o fim do racismo. Uma série de leis segregacionistas foram sendo criadas ao redor do mundo, notadamente nos EUA, para perpetuar a condição de subalternidade dos negros. 

Tais possibilitavam que os ex-escravizados e seus descendentes tivessem acesso ao mercado de trabalho e, logo, ao consumo, sem, no entanto, permitirem sua ascensão social ou participação política. Ou seja, os negros saíram da situação de escravizados para a de trabalhadores empobrecidos.

No Brasil não houve a criação de leis segregacionistas, como foi o caso de outros países, e este fato é que leva alguns a erroneamente acreditarem que nunca houve racismo por aqui. 

Um erro logo de saída, pois, conforme dito, a própria escravidão se constituiu no ato fundador do racismo, quando negros e índios foram subjugados para o trabalho compulsivo. 

Mas um erro também de continuidade, pois as leis segregacionistas deixaram de ser aqui implantadas simplesmente porque não eram necessárias.  
É que a estrutura agrícola, latifundiária e estratificada do capitalismo brasileiro não permitia oportunidades de enriquecimento ou ascensão social para os trabalhadores: nos EUA no século 19 havia campo propício para o empreendimento do pequeno burguês, mas no Brasil pós-abolição existia pouco ou nada que um pequeno empresário pudesse fazer. 

A inexistência de um setor industrial no Brasil também favoreceu a baixa inclusão do negro, pois não era preciso um mercado consumidor pujante, bastando a exígua classe média urbana e a elite nacional, que consumia produtos de manufaturas estrangeiras. 

Mesmo com a posterior industrialização e complexificação do capitalismo brasileiro, a situação do negro não se modificou muito, pois este precisava agora competir com o trabalhador branco imigrante, o que favorecia a queda nos salários e jogava os negros para subempregos, prestando serviços domésticos ou braçais para a classe média urbana a valores exíguos. 

Ou seja, o racismo no Brasil acabou estendendo-se ao período pós-abolição, como mecanismo para prover serviços auxiliares ao novo capitalismo industrial e urbano. Enquanto trabalhadores brancos poderiam servir na indústria, no comércio ou na burocracia estatal, os negros ficavam responsáveis por cuidar de suas casas, servir-lhes comida ou realizar algum outro serviço braçal. 

E esta forma de socialização econômica do negro permaneceu atrelada a um pensamento racista, de considerar o negro como sendo naturalmente inferior, pensamento disseminado pela elite e pela classe média. 

Mas não apenas inferior, mas também como sendo perigoso, pois agora livre e em maioria. Por isso, a violência sempre foi uma marca das ações das forças de segurança contra os negros, pois enquanto trabalhadores altamente precarizados, são vistos como potencialmente subversivos.

Portanto, o racismo no capitalismo brasileiro cumpre a função de baratear o custo da mão-de-obra trabalhadora, com a oferta de serviços primários a preços baixos e a queda geral dos salários pela ampla oferta de mão de obra. 

Não se deve, portanto, enfocar o racismo estrutural de um ponto de vista moral, mas sim considerando-o uma construção do capitalismo para explorar a mão-de-obra negra, primeiramente na forma escrava e depois na forma assalariada. A essência do racismo não está na discriminação individual, mas na subjugação do trabalhador de pele negra. 

Vem daí que não basta representatividade, é necessário modificar a estrutura social, o que torna imprescindível a abolição do próprio capitalismo. (por David Emanuel de Souza Coelho)

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