domingo, 16 de outubro de 2016

EM LOUVOR DA GRANDE CONTRIBUIÇÃO MUSICAL QUE A ÁFRICA DEU ÀS AMÉRICAS

Bill Haley, Elvis Presley, Jerry Lee Lewis, Bob Dylan, Beatles e Rolling Stones, no pop; Tom Jobim, Vinícius de Morais, João Gilberto, Chico Buarque e Caetano Veloso, na família do samba; de reconhecidos talentos e mundialmente famosos, todos são continuadores da música visceral dos escravos negros.         
Além de suas contribuições decisivas para a construção das Américas, regada a sangue, suor e lágrimas, os africanos aqui chegados deram outra contribuição tão significativa quanto esta primeira: o legado cultural, traduzido na culinária, no admirável desempenho esportivo, nas danças e nas artes em geral, com destaque para a criação de ritmos musicais que encantam o mundo. 

Vindos sob grilhões como mercadorias e animais de carga, e tratados a chicotadas pelos civilizados senhores europeus, os negros africanos traziam em suas almas torturadas e dominadas uma riqueza imaterial de incomensurável valor mercantil: a capacidade de traduzir em melodias tristes ou alegres a crença na vida, confrontando com a força interior de suas resistências o contexto escravocrata feudal que se introduzia nas Américas (e que iria pouco tempo depois desembocar no escravismo capitalista, no qual todos são livres para se submeterem ao tacão do capital). 
"traduzir em melodias tristes ou alegres a crença na vida"

Neste momento de homenagem a Bob Dylan, cuja música se fundamenta na fusão do country & western irlandês-estadunidense com a batida do blues africano em versão eletrificada (o chamado rhythm and blues da escola de Chicago), há que se perguntar por que o rei do rock foi Elvis Presley e Jerry Lee Lewis o vice-rei, ao invés de Chuck Berry ou Little Richard? É que o establishment americano somente podia aceitar o rock’n’roll que havia tomado conta da juventude se interpretado por artistas brancos. 

Elvis, com sua maravilhosa voz, beleza física e trejeitos insinuantes, bebeu na fonte africana com a qual conviveu na infância e juventude de menino pertencente ao poor white trash, como os estadunidenses preconceituosos se referiam aos brancos pobres. 

Era um branco que cantava como os negros (com quem aprendeu o jeito de dançar e cantar), e somente assim o rock’n’roll (derivado do blues sulista dos escravos negros nos EUA, com andamento musical apressado) pôde ser aceito pela grande maioria da sociedade estadunidense, explicitamente dividida em ambientes exclusivos para negros e para brancos.      
Woodstock: Jimi Hendrix implodiu o hino nacional dos EUA!

O grande Chuck Berry (considerado pela revista Rolling Stone com o 5º melhor artista e o 7º melhor guitarrista dos EUA, compositor de melodias e solos inigualáveis como os de Johnny B. Goode, Maybellene, Roll Over Beethoven, Sweet Little Sixteen, Route’66, Memphis Tennessee e tantas outras preciosidades, dançarino virtuoso e cantor excepcional, teve de amargar alguns anos de prisão quando estava no auge do sucesso, como consequência de uma acusação inconvincente de corrupção de menores. A tendenciosa perseguição policial aos negros nos EUA ainda hoje é uma mazela abominável.

Ray Charles, o menino negro, pobre e cego do sul dos Estados Unidos, que compunha letras e melodias imortais, tocava piano e instrumentos de sopro, cantava com sentimento e voz inconfundíveis, tendo efetivamente sido um dos mais completos artistas que o mundo contemporâneo conheceu, nem por tudo isso é rei de seja lá o que for. 

Os mais famosos ritmos americanos derivam do blues, raiz de uma gama variada de estilos que foram tecidos originalmente nos barracões mal acabados em que moravam os escravos negros africanos. 
Resposta a quem o acusava de rebolar como um negro

O rock’n’roll, o reggae, o funk, as baladas fundidas com o country folk, etc., são descendentes diretos do blues, a música negra lamentosa que embutia protesto em seus acordes dolentes, e que apareceu originalmente para o grande público sob a forma do gospel religioso (porque só assim era aceito publicamente) para somente depois, e lentamente, assumir o seu posto profano em comunidades, festas e emissoras de rádio exclusivas para negros. 

A bela canção Like a Rolling Stone, um dos maiores sucessos de Bob Dylan, bem como a denominação da banda inglesa do Mick Jagger, devem ao negro Muddy Waters, um dos maiores compositores e instrumentistas de blues dos Estados Unidos, a expressão famosa, título de seu sucesso Rollin Stone ("He's gonna be, he's gonna be a rollin stone/ Sure 'nough, he's a rollin stone/ Sure 'nough, he's a rollin stone"). A inspiração de Waters, por sua vez, foi um velho provérbio latino, pedras que rolam não criam limo.

Foi necessário que os jovens ingleses dissessem sim à música negra americana para que os americanos a adotassem como sua. B. B. King e sua guitarra fazia o blues afirmar a qualidade instrumental dos negros americanos; e Nat King Cole, uma das mais belas vozes humanas, teve de certa vez usar maquiagem branca para diminuir a aparência de sua negritude, além de ser boicotado, ficando sem patrocínio comercial no seu programa de televisão, apesar do sucesso.    
O mestre Muddy Waters e seus discípulos britânicos

Sobre a influência da música negra nos Estados Unidos se pode escrever um tratado, mas a nossa intenção aqui é somente fazer o registro da importância cultural afro-americana nem sempre reconhecida, e que é um dos mais importantes legados culturais aos EUA, sendo, contudo, muitas vezes confundida como uma criação branca (o primeiro grande sucesso de Elvis Presley, que catapultou a sua trajetória de inegável talento em 1955, foi That’s all right Mama, um blues então já antigo do negro Arthur big boy Crudup, cujo andamento musical foi apressado. 

A outra vertente musical africana das Américas reconhecida mundialmente é o samba. No Brasil, país cujo contingente de negros (em termos absolutos) é um dos maiores do mundo, o legado africano em todas as áreas da vida social é marcante, sendo inegável que o samba se constitui hoje numa das maiores expressões da identidade nacional brasileira mundo afora. 

O batuque musical dos tambores rústicos das senzalas brasileiras tomou forma gradual até ganhar a sonoridade bem acabada de um Pixinguinha, Donga, Sinhô, João da Baiana, Ismael Silva, Heitor dos Prazeres, Josué de Barros e tantos outros negros que no início do século XX conseguiram estabelecer no gosto popular um jeito de cantar e dançar únicos, genuinamente brasileiros, superando preconceitos de uma elite empedernida em seus salões de gala nos quais só se ouviam e dançavam minuetos, polcas, valsas e ritmos europeus (quanto muito aceitava o chorinho, que tem um pé na senzala, mas que tocado ao piano por um Ernesto Nazareth era confundido com ritmos europeus), e que fazia questão de afirmar o seu desprezo por aquela música por eles considerada de qualidade inferior. 

Embora correndo o risco de ser traído pela memória e omitir nomes importantes, não é demais dizer muito obrigado a todos os músicos negros brasileiros, homens e mulheres, que nos deram um patrimônio cultural imaterial incomensurável. 
"um patrimônio cultural imaterial incomensurável"

E o faço nas pessoas de alguns dos seus mais destacados expoentes, como os senhores Assis Valente, Wilson Batista, Cartola, Orlando Silva, Nelson Sargento, Carlos Cachaça, Nelson Cavaquinho, Candeia, Zé Keti, Mansueto, Paulo da Portela, Bide (Alcebíades Barcelos), Brancura (Sílvio Fernandes), Marçal, Monarco, Elton Medeiros, Roberto Silva, Riachão, Jorge Ben Jor, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Dorival Caymmi, Grande Otelo, Ataulfo Alves, João do Vale, Martinho da Vila, Jackson do Pandeiro, Blecaute, Ciro Monteiro, Jamelão, Agepê, Bezerra da Silva, João Nogueira, Baden Powell, Bola Sete, maestro Erlon Chaves, maestro Cipó, Johnny Alf, Jair Rodrigues, Jackson do Pandeiro, Luiz Gonzaga, Tim Maia, Ed Motta, Zezé Mota, Luiz Airão, Roberto Ribeiro, Preto Jóia, Mussum, Emílio Santiago, Luiz Melodia, Djavan, Carlinhos Brown, Dudu Nobre, Zeca Pagodinho, Arlindo Cruz, Sombrinha, Mestre André, Paulinho Mocidade, Neguinho da Beija-Flor, Dicró, Jorge Aragão, Arlindo Cruz, Xande de Pilares, Péricles, Alexandre, Thiaguinho, Diogo Nogueira, Sérgio Loroza e Mumuzinho. 

E mulheres maravilhosas como Clementina de Jesus, Dona Ivone Lara, Elizeth Cardoso, Dolores Duran, Jovelina Pérola Negra, Eliana Pittman, Marya Rosa Colin, Alcione, Carmen Costa, Elza Soares, Sandra de Sá, Negra Li, Margareth Menezes, Mart’nália, Leci Brandão, Preta Gil, Vanessa da Mata, Mariene de Castro e tantas outras (faltaria espaço neste artigo para todos eles e elas).
Se o blues e seus derivados representam a identidade cultural dos EUA, o samba é a identidade musical brasileira perante o mundo, e todos nós devemos isso aos negros, a quem concedo o meu particular e anônimo Prêmio Nobel da Música. SARAVÁ! 
Por Dalton Rosado
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Bob Dylan no 1º álbum: influência marcante da música negra.

Um comentário:

Anônimo disse...

Excelente artigo, Dalton !

Forte abraço

Marcelo Roque

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